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O rapto que colocou o Boko Haram no mapa

14 abr, 2015 • Filipe d'Avillez (texto) e Marília Freitas (vídeo)

Passa esta terça-feira um ano sobre o rapto das quase 300 raparigas nigerianas. Foram 365 dias em que nada se conseguiu fazer para as resgatar.

O rapto que colocou o Boko Haram no mapa
A 14 de Abril de 2014, o grupo terrorista islâmico Boko Haram rapta 276 raparigas numa escola na Nigéria. O caso agita o mundo, que pede "tragam de volta as nossas raparigas" (#BringBackOurGirls). Apenas 50 a 60 estudantes terão, até hoje, conseguido escapar pelos próprios meios. Desde o rapto que mediatizou o Boko Haram, os jihadistas continuaram a ganhar terreno e a espalhar o terror na África Ocidental.
No ano de 2002, nasceu um grupo islâmico radical na África profunda. Mais um, na sequência do 11 de Setembro. Não surpreende que poucas pessoas no mundo tenham dado importância ao "Grupo do Povo da Sunnah para a Pregação e Jihad", que mais tarde viria a ser conhecido por "Boko Haram". O nome significa: a educação não islâmica (ou ocidental) é pecado.

A Nigéria é uma das grandes potências africanas. Não sendo o maior país em termos geográficos, é-o em termos demográficos, com quase o dobro que a Etiópia, que ocupa o segundo lugar. Mas é também um país dividido, a nível cultural e étnico e, o que torna a situação mais explosiva, a nível religioso também.

No centro do país, onde o Sul cristão e o Norte muçulmano se misturam, começou a ser frequente a violência inter-religiosa, havendo também casos de perseguição a cristãos nas cidades islâmicas mais a norte. É nesta altura que se começa a ouvir falar mais do Boko Haram, que multiplica os seus ataques no Norte do país. Os cristãos são um dos alvos preferenciais, com destaque para atentados a igrejas no Natal e na Páscoa, mas qualquer agência oficial do Estado, incluindo polícia e militares, é também considerado inimigo.

Em Fevereiro de 2014 os terroristas mataram 100 homens cristãos numa aldeia, e mais tarde, no mesmo mês, tomaram de assalto uma escola de rapazes onde mataram 59 alunos. Mas o caso que verdadeiramente catapulta o Boko Haram para a fama internacional é o rapto, na noite de 14 de Abril de 2014, de perto de 300 raparigas de um colégio interno na região de Chibok, no norte do país.

Ao todo são 276 as alunas raptadas, com idades entre os 16 e os 18. Estavam entre mais de 500 que tinham sido chamadas, de várias escolas das redondezas, para fazer o exame nacional de física. A escola foi reaberta de propósito para o efeito, uma vez que tinha sido encerrada quatro semanas antes, devido à crescente insegurança.

Incredulidade, depois choque
A Nigéria é um país grande e muitos dos actos do Boko Haram são levados a cabo em locais distantes, pelo que as notícias demoram a chegar ao mundo ocidental. Quando chegam, os factos e os números certos são por vezes difíceis de confirmar.

Foi por isso com incredulidade que a imprensa ocidental recebeu a informação. As primeiras notícias vieram a público apenas no dia 16 de Abril e falava-se inicialmente de 100 raparigas. Mas o número não parava de subir e acabou por chegar perto de 300.

Sabe-se agora que as forças armadas da Nigéria tinham recebido um aviso, quatro horas antes do ataque à escola, mas que foram incapazes de enviar reforços para a zona para impedir a tragédia.

Os militantes do Boko Haram tiveram, por isso, caminho quase aberto para entrar na escola e levar as suas vítimas. Carregaram-nas em camiões e levaram-nas para uma base secreta. Cerca de meia-centena tiveram a presença de espírito de saltar dos veículos em andamento e a sorte de sobreviver às caminhadas pelo mato até encontrarem ajuda, mas pelo menos 276 foram levadas.

A 5 de Maio o grupo reivindicou a autoria do ataque e uma semana mais tarde lançou um vídeo onde se viam as raparigas, todas cobertas com véus islâmicos. Explicava-se que as não muçulmanas tinham sido convertidas e que o destino a dar às raptadas seria o casamento com jihadistas.

"A minha religião permite a escravidão", justificava o líder do Boko Haram, que dizia ainda que Alá tinha ordenado que vendesse as raparigas. Estas, insistia, não deviam ter estado na escola, pois como tinham mais de nove anos tinham idade para estarem casadas.

"Bring back our girls"
Uma campanha internacional tomou de assalto as redes sociais, com pessoas de todo o mundo, incluindo grandes figuras como Michelle Obama, a postarem fotografias a segurar sinais que diziam: "Bring back our girls" (tragam as nossas raparigas de volta). O governo nigeriano foi fortemente pressionado para dar mais informação, ou resgatar as vítimas, mas nada pôde ser feito.

Surgiram então notícias que indicavam que muitas das raparigas de Chibok tinham sido levadas para mercados de escravos em países vizinhos enquanto outras tinham sido forçosamente casadas com combatentes do grupo terrorista. Para receberem uma destas "noivas", os jiadistas deviam pagar um valor que rondava os 10 euros, segundo alguns relatos.

Até hoje, as forças armadas da Nigéria não conseguiram salvar nenhuma rapariga. No dia 5 de Maio de 2014, uma tentativa de as encontrar acabou em tragédia, quando os militares que guardavam a vila de Gamboru Ngala para procurar as vítimas o Boko Haram aproveitou a sua ausência para massacrar 300 habitantes.

Houve informação de pelo menos duas tentativas de negociação, com propostas de trocar as raparigas raptadas por militantes detidos nas prisões nigerianas. Nada se concretizou: ou as notícias eram falsas ou as propostas foram infrutíferas.

Desde o rapto, pelo menos mais quatro raparigas conseguiram escapar do seu cativeiro. Depois de andarem durante três semanas até se encontrarem em segurança, disseram que tinham sido mantidas num campo nos Camarões e que durante esse período, de Abril a Setembro, foram violadas todos os dias.

Antes, membros de uma milícia civil encontraram duas raparigas do grupo original, despidas e atadas a uma árvore, em péssimo estado de saúde. Outras quatro raparigas "desobedientes" teriam sido mortas e queimadas pelo Boko Haram.

Desde o rapto de 14 de Abril o grupo fundamentalista tornou-se ainda mais influente, chegando a ocupar várias cidades no norte da Nigéria. Os raptos e os massacres também continuaram, estimando-se que actualmente o Boko Haram tenha na sua posse mais de 500 mulheres e raparigas raptadas.

Em Março de 2015 o Boko Haram anunciou a sua fidelidade ao Estado Islâmico, reconhecendo o seu líder como verdadeiro califa. O juramento seguiu-se a uma fase em que as comunicações e a propaganda do grupo africano registaram um grande aumento de qualidade, indicando que já havia colaboração nesse sentido entre as duas organizações terroristas.

Actualmente o Boko Haram está sob forte pressão e enfrenta uma coligação composta não só pela Nigéria, mas também pelos exércitos de países vizinhos como o Níger, Chade, Camarões e Benim.

Depois de anos de constantes avanços e vitórias, o grupo parece estar finalmente em retirada, tendo perdido várias cidades importantes nos últimos meses. Das raparigas do Chibok, contudo, continua a não haver qualquer notícia.