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Xeque David Munir. "O islão não precisa de reformas, precisa de educação"

14 abr, 2015 • Filipe d'Avillez (texto), Inês Rocha e Ricardo Fortunato (vídeo)

Há um ano, centenas de raparigas eram raptadas na Nigéria pelo Boko Haram. Do "Charlie Hebdo" ao Estado Islâmico, nos últimos meses o extremismo islâmico tornou-se incontornável. Numa entrevista com a Renascença, o imã de Lisboa diz que o problema do radicalismo na Europa é a falta de integração.

Xeque David Munir. "O islão não precisa de reformas, precisa de educação"
Há um ano centenas de raparigas eram raptadas na Nigéria pelo Boko Haram. Do "Charlie Hebdo" ao Estado Islâmico, nos últimos meses o extremismo islâmico tornou-se incontornável. Numa entrevista com a Renascença, o imã de Lisboa diz que o problema do radicalismo na Europa é a falta de integração.
Um ano depois de um dos piores actos de terrorismo islâmicos em África, o rapto de perto de 300 raparigas na Nigéria pelo Boko Haram, a Renascença foi recebida na Mesquita Central de Lisboa pelo xeque David Munir.

Numa entrevista em que defende a importância da educação (o inimigo principal do Boko Haram) para todos no mundo islâmico, o imã lamenta que quando um muçulmano perturbado mata pessoas considera-se terrorismo, mas quando um piloto alemão perturbado faz o mesmo já ninguém usa o mesmo termo.

Faz esta terça-feira um ano que foram raptadas centenas e raparigas de uma escola na Nigéria, por um grupo que diz agir em nome do islão. Enquanto clérigo muçulmano, como é que isto o faz sentir?
Com muita tristeza, com muita mágoa, muita dor. O facto de qualquer acção de agressividade ser feita, por qualquer pessoa, já é triste. Quando é feita em nome de uma religião que transmite a paz e quer uma boa convivência entre as pessoas e entre os povos, muito mais nos entristece.

Infelizmente já se passou um ano e ainda elas continuam nas mãos deles e parece que a comunidade internacional parou, não se consegue fazer nada, fala-se muito e faz-se quase nada.

Este ano tem sido particularmente complicado em termos de terrorismo por parte de grupos fundamentalistas islâmicos. O rapto das raparigas na Nigéria, a ascensão do Estado Islâmico, o ataque ao "Charlie Hebdo", o massacre na Universidade de Garissa, no Quénia…Tem sido difícil para a comunidade muçulmana gerir o impacto destes actos?
Não tem sido fácil. É um a seguir ao outro... Tentamos esclarecer as pessoas e vamos continuar a fazê-lo, independentemente de as pessoas gostarem ou não, de criticarem ou não, vamos continuar a fazê-lo e a dizer a verdade, porque quem esconde a verdade é mais criminoso que aquele que comete o próprio crime.

Em Portugal não tem havido situações destas, mas no resto da Europa, sim. Porquê?
O problema das outras comunidades islâmicas no ocidente, mais concretamente na Europa, é de integração, convivência e ajustes de cultura.

Nós não perguntamos aos muçulmanos portugueses se estão ou não integrados, nem sequer se coloca. Então porque é que está na agenda das outras comunidades? Porque desde o início, quando essas comunidades começaram a crescer, foram-se criando guetos, e temos vários casos em vários países da Europa. Aqui não temos, felizmente, porque, se tivéssemos, provavelmente iríamos ter mais ou menos os mesmos problemas de base.

Depois, a nova geração é muito globalizada. Tudo o que se passa num local, de imediato, todo o mundo fica a saber e depois é através das redes sociais que, infelizmente, alguns muçulmanos com pouco conhecimento, e um pouco perturbados...

Porque esse aspecto também é importante, muitos deles estão perturbados e com pouco conhecimento e com alguma perturbação, facilmente caem nessas teias. Depois tornam-se radicais, terroristas, matam pessoas inocentes. Mas se for um não muçulmano que mate 150 pessoas inocentes, como aconteceu recentemente [no desastre do avião da Germanwings], ele nunca é considerado terrorista.

O Estado Islâmico aponta para antecedentes na tradição da jurisprudência islâmica para quase todos os seus actos, incluindo o lançamento de homossexuais do topo de prédios, a escravatura de membros de minorias religiosas, a lapidação de adúlteros e o corte das mãos a ladrões. Estes antecedentes de facto existem...
As pessoas têm de ter noção que o Alcorão é o código de vida dos muçulmanos.

Acontece que a prática do Alcorão é a "Sunna", aquilo que o profeta disse ou aquilo que o profeta fez. O que vem a seguir, a jurisprudência, a analogia, vem quando as pessoas tentam interpretar um assunto que não está mencionado directamente nos "hadites" [dizeres atribuídos a Maomé e que chegaram por tradição oral] nem no Alcorão. Muitas das vezes a resposta que é dada não é exactamente a mesma que seria dada há uns anos.

Há sempre aqueles teólogos que dão uma interpretação não diria necessariamente errada, mas um pouco mais exagerada, mais conservadora, da prática do islão. É a tradição do profeta comer com as mãos, mas uma pessoa comer com talheres não é cometer um pecado. Era tradição do profeta sentar-se no chão para comer, mas uma pessoa utilizar a mesa não é pecado. Temos de saber adaptar-nos.

Essas interpretações mais fundamentalistas tendem a ser de tradição salafita, que é a inspiração para grande parte dos jihadistas…
Muita coisa dita sobre o salafismo não é verdade. Na realidade, na prática, estando com eles, convivendo com eles, não tem nada a ver com muitas das coisas que ouvimos falar.

Eles têm feito muito trabalho positivo para que as pessoas possam, no mínimo, praticar o islão de acordo com as suas possibilidades. Não só pelo facto de construirem mesquitas (uma virtude enorme), mas também por apostarem na manutenção da mesquita, como é que ela deve ser dirigida, como é que tem de ser visitada, como é que tem de se explicar o islão. Há muita coisa que tem sido feita que infelizmente não é divulgada, nem sequer é dita.

O salafismo é também o tipo de islão praticado na Arábia Saudita. A comunidade Islâmica de Lisboa aceitou ajuda financeira da Arábia Saudita para construir esta mesquita?
Recebemos de uns empresários, foi particular.

Com essa ajuda nunca sentiram pressão sobre os vossos ensinamentos?
Nunca. A Mesquita Central de Lisboa é uma mesquita aberta para todos, não há influência directa nem indirecta de qualquer ideologia ou de qualquer escola de interpretação do islão ou de qualquer tipo que não seja islâmico. A mesquita é de todos.

O presidente do Egipto disse recentemente que é preciso fazer-se uma reforma do islão. O que lhe parece esta frase? Isso seria sequer possível?
Bem, dizer que é preciso fazer uma reforma do islão é algo muito vasto e muito complexo. Reformas de quê? Mais importante é educar os muçulmanos, criar condições, seja no Egipto ou em qualquer parte, em países islâmicos, enfatizar mais a educação, muito mais. Para eles e para elas.

E depois, tentar equilibrar o aspecto social. É interessante que um dos pilares básicos do Alcorão é a caridade. Se cada muçulmano contribuísse com a caridade obrigatória pode crer que muita pobreza iria acabar.

Olhando para o que se passa no Médio Oriente, concorda que a raiz do problema está num conflito entre sunitas e xiitas?
Não. O problema entre sunitas e xiitas pode-se resolver, se eles quiserem e se se entenderem. O problema do Médio Oriente, mais concretamente, é o problema entre o Estado de Israel e a Palestina. Se Israel respeitar a Palestina e se a Palestina respeitar Israel, mas respeitar mesmo, então 50% dos problemas serão resolvidos.

Como é que o problema entre Israel e Palestina está a afectar o Iémen, onde vemos uma intervenção de vários países sunitas e o Irão a apoiar os houthis...
Isso é um reflexo daquilo que se vai passando no Médio Oriente. Nem temos de ir ao Iémen, vamos ao Iraque...

Mesmo o Iraque, como é que esses problemas entre xiitas e sunitas dependem de Israel?
Estamos a falar do Médio Oriente, em geral. Se houver um entendimento [entre Israel e Palestina] então é uma bola de neve.