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Reportagem

Encontrar Deus atrás das grades

09 mar, 2015 • Liliana Monteiro

Celine rezava o terço quando ouviu a notícia da sua libertação – para trás estava um processo de aproximação ao catolicismo. Antonieta e Armindo fazem trabalho voluntário nas cadeias há mais de uma década. Uma forma de viverem a fé.

"Eu tive a minha liberdade na hora do meu terço. O dia passou mal, eu estava abatida. Fui para o meu quarto e pus-me a rezar – precisava de força. E antes de começar o 5.º Mistério, a guarda abre a porta e diz: 'Celine Veiga, você está livre'." Às 21h00 desse mesmo dia Celine terminou o terço em Fátima.

Celine estava presa em Tires. Terá sido uma das reclusas mais difíceis que passaram pelas mãos de Antonieta, que faz voluntariado naquela prisão.

Pelo menos uma vez por semana há voluntários cristãos que se deslocam aos estabelecimentos prisionais para ajudar e conversar com quem cumpre pena atrás das grades.

"O sol parece que não bate, o vento não se sente. Lá não há nada, é um mundo fechado e vazio", diz Ana (nome fictício). "Falta o ar, falta a família, falta a nossa casa", confessa Celine.

Ambas são ex-reclusas do estabelecimento prisional de Tires. Estar presas afastou-as dos filhos durante mais de quatro anos. Muitas vezes faltaram as forças: não havia rumo, nascia o desespero e o medo.

Ana recorda-se bem do primeiro dia em que entrou na prisão. "Ficamos numa sala de observação sozinhas. Lembro-me que na minha cama estava pendurado um terço que era fluorescente e à noite brilhava. Eu não sabia como rezar o terço – peguei nas bolinhas e fiz tudo ao contrário. Num dia perguntei à Antonieta como se rezava."

Antonieta é voluntária há 13 anos. Visita reclusas em Tires. É católica e tem a sua actividade profissional, mas todas as semanas guarda espaço para dar de si.

"Durante aproximadamente três meses, rezava o terço completamente sozinha. Chegava com uma imagem de Nossa Senhora, que levo sempre, e rezava sozinha porque não vinha ninguém. Até que um dia uma brasileira que ia a passar viu-me e sentou-se comigo a rezar. Nas semanas seguintes começou a aparecer mais gente", recorda Antonieta.

"Nos primeiros dias vamos lá uma primeira vez e não ligamos nenhuma àquilo", conta Ana. "Só vamos porque aquele bocadinho é diferente. É uma hora que passa e parece que não estamos naquele espaço. Vai uma falando, a outra respondendo, outra vai partilhando um problema. Até as pessoas que convivem todos os dias naquele bocadinho são diferentes’.

Das "zaragatas" à oração
Antonieta é natural de Vila do Conde. "Percebi aos meus 40 anos que tinha algo mais para dar e que Deus me estava a pedir isso. Resolvi vir para Lisboa para ir para as missões, Cabo Verde, Angola ou Timor", conta. Mas foi convidada a participar num presépio vivo na prisão. "Quando lá cheguei algo aconteceu dentro de mim e senti que era aquilo", revela.

A decisão não foi bem recebida pela família. "Os meus irmãos quiseram que eu fosse vista por um psiquiatra. Fui vista, mas não tinha nada, andava era à procura de algo que ia além do que eles me podiam dar."

Começou por ir à prisão uma única vez por semana. Hoje está lá uma média de duas a três horas por dia em oração. Conversa, escuta e é muitas vezes chamada em períodos de maior fraqueza de algumas reclusas.

A prisão tornou Celine uma pessoa rebelde. "Tudo me corria mal, as guardas eram más. Tinha de ser sempre tudo eu, eu, eu", diz.

Antonieta conta-nos esta história. "Ela tinha um poder grande lá dentro perante as outras reclusas. Sempre que havia zaragatas, a Celine estava metida. Fazia uma guerra enorme contra a oração, ria-se quando eu passava, fazia pouco do que eu estava a fazer. Tudo isto só para tentar que eu não fizesse a oração."

Antonieta percebeu que Celine podia mudar numa procissão do 13 de Maio. As reclusas aperaltaram-se e colocavam-se cada uma no seu lugar, de papel na mão, prontas a participar na celebração.

"Nesse dia, a Celine, para meu grande espanto, estava pronta também para participar na procissão e tinha tirado o Mistério que ia ser meditado à pessoa que o ia ler. Leu, muito bem arranjada com os seus ouros, os brincos e maquilhada. Na semana seguinte, quando fui rezar, no sábado, a Celine apareceu, entrou e ficou em silêncio no fundo da sala".

Um engenheiro na biblioteca
Armando, engenheiro já reformado, faz voluntariado cristão há mais de dez anos. Sente que é preciso lutar cada vez mais por uma sociedade do "ser" e não do "ter". Foi por isso que decidiu dar de si aos reclusos do estabelecimento prisional de Lisboa.

Todas as terças-feiras entra na biblioteca desta prisão e ali fica disponível para os reclusos. "Já tive situações de ter apenas um recluso na sala. Quando estamos sozinhos eu vou para a porta da biblioteca para ver no corredor da ala se conheço algum. Já cheguei a ter 13, 14 reclusos".

"Ao ver as experiências de vida, os amigos que tiveram e o meio por onde andaram, chegamos à conclusão que a falta de valores é tão grande."

Esta reportagem, emitida no último programa Princípio e Fim, faz parte de um ciclo de trabalhos da Renascença que partem do desafio do Papa Francisco na sua mensagem para esta Quaresma. A Renascença partiu à procura de cristãos que se dão aos outros em áreas habitualmente esquecidas ou periféricas, contrariando a "indiferença" denunciada por Francisco