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Patriarca pede casais “mais ecológicos”

09 fev, 2015 • Graça Franco e Ângela Roque (entrevista). Inês Rocha e Edgar Sousa (vídeo)

Aumentar o recurso à nulidade do matrimónio e tornar as preparações para o casamento católico mais exigentes são os caminhos que o Patriarca de Lisboa aponta para o sínodo da família. Em entrevista à Renascença, D. Manuel Clemente defende uma reforma da Cúria que torne a Igreja mais evangélica.

Nota-se a satisfação e o gosto de D. Manuel Clemente em trabalhar com o Papa Francisco. Agora que é feito cardeal, como acontecerá no sábado, ainda maior será a ligação. Mas, antes do consistório público de sábado, ainda há uma reforma da Cúria para ser apresentada e da qual o Patriarca espera uma estrutura mais clara e uma Igreja mais evangélica.

Quanto ao sínodo da família (o grande tema que vai marcar a Igreja ao longo deste ano, como já marcou no fim do ano passado), o bispo de Lisboa explica os dois caminhos que podem ser percorridos - o grego e o latino - e pronuncia-se por um (o latino).

Vai trabalhar muito perto do Papa Francisco. É um desafio ou um privilégio?
É um desafio, com certeza! O Papa Francisco leva a exigência evangélica em tudo o que diz e em tudo o que faz a um tal ponto que é muito estimulante, mas também é muito exigente. E, depois, vamos lá ver o que é que ele pede. Porque os cardeais, ao longo da sua evolução histórica, são apoios do bispo de Roma na sua missão universal enquanto Papa, para isso mesmo, para uma missão que não se esgota ali na Igreja de Roma de que são bispos, mas se estende a todas as Igrejas. Porque são sucessores de Pedro e nisso confirmam os irmãos.

Esta semana, o Conselho dos Cardeais vai entregar ao Papa Francisco a proposta de reforma da Cúria. O que espera desta reforma?
Espero aquilo que já está indiciado: uma simplificação que é também uma clarificação dos serviços centrais da igreja. Tudo quanto existe à volta do Bispo de Roma, do Papa, tem como finalidade meter a Igreja Católica, na sua vida, na sua missão. Quanto mais simples for, quanto mais clara for, quanto mais evangélica for, melhor. É isso que espero.

Uma grande congregação para os leigos seria um dos caminhos que via com bons olhos?
Já existe um conselho. Chamar-se conselho, chamar-se congregação... O que importa é que seja simples, seja claro e que funcione.

A Igreja de Lisboa mobilizou-se para estar consigo, em Roma. Sabe-se que vão estar, pelo menos, 300 portugueses. É importante sentir este apoio?
Claro que é sempre importante e agradeço a disponibilidade das pessoas e até os gastos que fazem. Mas sublinho que é uma maneira de essas pessoas estarem com o Papa Francisco, porque ser cardeal é em função do Papa Francisco e do seu ministério. Vamos lá para estar com o Bispo de Roma, que é o sucessor de Pedro, que nos conduz e nos confirma. E nós, aqui, na Igreja de Lisboa, vamos estar com ele também por este motivo de ele ter escolhido aquele que, neste momento, é o bispo de Lisboa para ser seu cardeal, seu apoiante, mais nada.

Estamos a caminhar para a segunda fase do sínodo para a família, que vai, certamente, marcar a Igreja a nível universal. Quais são as suas expectativas?
São positivas porque já vêm preenchidas com o que aconteceu detrás. Uma coisa muito interessante desta 'governance' do Papa Francisco, deste bom governo, foi levar as coisas com calma e englobando o maior número de pessoas e de recursos na reflexão. Tanto quanto posso depreender daquilo que leio e do que ouço ao Papa, o grande problema é o que ele chama "a crise do compromisso comunitário". Ele olha para o mundo e vê um mundo quantitativamente próximo como nunca esteve, mediaticamente acessível como nunca esteve, mas, realmente, pouco vizinho. Aquilo que se diz também que a multidão é um deserto: torna-nos muito próximos fisicamente, mas não nos torna vizinhos.

É a tal globalização da indiferença...
Isto, para o Papa Francisco, já na Argentina e, agora, em Roma, é o cerne do problema. E como é que isto se resolve? Isto devia resolver-se com uma sociabilidade reencontrada. Mas qual é a base da sociabilidade, onde é que as pessoas nascem? É nas suas famílias. Temos de atacar aí o problema. Julgo que a reflexão que o Papa induziu em toda a Igreja sobre a problemática familiar, precedendo-a até de uma consulta em que se envolveram centenas de milhares de pessoas em todo o mundo (só aqui, do Patriarcado de Lisboa, foram mais de 14 mil respostas). Depois, como isso tudo foi trabalhado na sessão do Sínodo dos Bispos de Outubro passado, chegou-se àquelas conclusões - umas por ampla maioria, outras por maioria mais reduzida -, o que mostra que, em relação alguns pontos, já há uma grande coincidência de ideias. Em relação a outras, vamos lá ver, isto mais devagarinho porque há alguns aspectos a clarificar"...

Há uma grande expectativa da sociedade em geral e de muitos católicos em verificar mudanças no acesso aos sacramentos. Que mudança pode haver?
Em primeiro lugar, o problema: o número considerável de casos de cristãos e cristãs que celebraram o sacramento do matrimónio e em que, depois, esse sacramento não prosseguiu. E, além disso, os casos em que um deles, ou os dois, criaram novas ligações conjugais. Não deixam de ser cristãos por isso, o baptismo coloca-os na igreja, mas podem, ou não, vir a aceder ao sacramento da eucaristia, sobretudo naquelas situações em que já não há regresso possível? Na resposta, temos de ter em conta, antes de mais, que os sacramentos não são actos isolados. Os sacramentos são, para falar à maneira de S. Paulo, a vida em Cristo, que é um todo. Os momentos sacramentais têm de coincidir uns com os outros. Portanto, não posso dizer que estou em comunhão se realmente não estou. Porque tenho ali, para trás, uma ruptura por resolver, a ruptura de um compromisso sacramental, também, e um casamento que não prosseguiu.

Face a este problema, têm sido aventadas duas vias de solução: uma via que podemos chamar mais grega (porque está mais ligada à tradição oriental da igreja), que é a hipótese de, nalguns casos, depois de um processo penitencial, haver um novo casamento abençoado, embora não com as mesmas características sacramentais do primeiro; e outra via, mais latina, que é a que temos seguido e está a ter maior incremento, que é verificar se o primeiro casamento, de facto, existiu, porque para que exista requer-se que da parte dos cônjuges, dele e dela, haja uma consciência, uma responsabilidade e uma liberdade suficientes para estarem a assumir aquele compromisso (a de uma vida a dois, una). O que vamos verificando e, às vezes, por razões e sintomas que só se conheceram depois da celebração do casamento, leva-nos a concluir que não e a verificar e a declarar a nulidade daquele casamento.

Esse é um recurso que já está disponível na Igreja...
Está disponível, mas pode-se incrementar. E porquê? Porque hoje, e cada vez mais, temos conhecimento do que é um ser humano, na sua psicologia, até na sua sociologia, na sua dependência do e com o meio, muito maior do que noutros tempos. E temos, até, uma compreensão mais continuada do que é a existência humana. Há coisas que na altura não se notam, mas que se revelaram depois, embora já lá estivessem em germe. É este tipo de reflexões que nós latinos temos desenvolvido mais. Vamos ver qual a via que o sínodo vai decidir. Por aquilo que vi na Assembleia de Outubro, julgo que será mais pelo desenvolvimento desta via latina. Julgo, mas, depois, em Outubro, falamos.

No fundo, é incentivar mais  os católicos (recasados) a recorrerem à nulidade...
No caso de já se ter celebrado o  matrimónio. E, depois - e preventivamente -, preparar com muito mais cuidado o sacramento do matrimónio, porque continuamos a acreditar - e isto é importante dizê-lo - que o ser humano, um homem e uma mulher, em principio, têm condições para jogarem e conjugarem toda a sua vida num sentido. Por exemplo, numa vocação sacerdotal, numa vocação religiosa, numa vocação matrimonial. O ser humano, se for devidamente habilitado e, depois, acompanhado - porque isto nunca se resume a um momento isolado -, é capaz.

Os cursos de preparação para o matrimónio têm de ser revistos?
Diria mais e antes do que isso: a preparação para o matrimónio é uma preparação para uma vida a dois e isto exige uma educação para sair de si, para viver em função do outro. E isto é criativo depois em relação aos filhos que nascem. Esta educação não se faz em meia dúzia de reuniões. Isto começa em casa.

O Papa falou, recentemente, na questão da paternidade responsável, com referência aos chamados métodos naturais...
Até com uma linguagem muito sugestiva... [a metáfora dos coelhos]

... que originou polémica. O que é facto é que o método que a Igreja propõe e defende não é seguido por muitos católicos e não é conhecido. Há aqui uma falha da própria Igreja?
Há uma falha nossa, agentes pastorais. Não só dos padres, mas também dos casais cristãos que procuram viver e conviver segundo os métodos naturais (que implicam a determinação do período fértil da mulher e a abstinência nesse curto período), médicos e médicas, enfermeiros... Muita gente tem conhecimento e também não encontrou maneira, também aqui, de chegar a todos. Agora, os métodos ditos naturais são métodos que requerem  consciência e responsabilidade. E quem toma a sua vida sexual, mesmo no matrimónio, apenas como um acto imediato, porque apetece, porque hoje ou amanhã as pessoas estão dispostas a isso, mas sem ter em conta o que é a vida em todos os seus aspectos psicofisiológicos, com esse imediatismo é difícil. Mas é difícil isto e é difícil tudo o que for... Devíamos ser mais ecológicos.

O que é que isso significa?
Quando falamos em ecologia, falamos na boa ordem do universo. De respeitar  todos os ritmos naturais, tudo quanto é animal e planta. Mas parece que essa ecologia pára quando se entra no corpo de cada um. Daqui para dentro, vale tudo: alterar o funcionamento das coisas, mesmo aquilo que funciona bem, e não respeitar aquilo que também são os ritmos próprios do corpo humano, masculino ou feminino. Há aqui uma enorme discrepância, porque, depois, quando se chega ao homem e mulher, desde que haja possibilidade química e vontade, tudo serve. Se tratássemos a natureza com esse mesmo à vontade químico para alterar o seu funcionamento - e, infelizmente, isso acontece em muitos casos - o acidente estava à vista. De qualquer modo, aceitar os períodos de abstinência para um casal em que, por exemplo, um dos membros não seja cristão, levanta problemas... Mas eu julgo que isto nem sequer se levanta apenas em termos confessionais. Estou a falar numa base ampla e antropológica, no que diz respeito à humanidade em geral. Se estamos a ver que temos de ter tanto cuidado no respeito da orgânica geral das coisas, porque é que também não havemos de ter algum respeito para com os nossos ritmos, mais concretamente com os ritmos da mulher?

Pode ouvir a entrevista na íntegra na "Edição da Noite" da Renascença, depois das 23h00