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Análise

A Igreja de Inglaterra já tem uma mulher bispo. O que muda?

26 jan, 2015 • Filipe d'Avillez

A ordenação de Elizabeth Lane como bispo de Stockport, em Inglaterra, tem efeitos negativos para as relações ecuménicas, mas também afecta o equilíbrio interno da Comunhão Anglicana.

A Igreja de Inglaterra já tem uma mulher bispo. O que muda?

A ordenação da primeira mulher para o episcopado na Igreja de Inglaterra, esta segunda-feira, tem importantes implicações tanto a nível interno da Comunhão Anglicana, como a nível das relações ecuménicas.

Do ponto de vista ecuménico, sobretudo no que diz respeito às relações com a Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa, os efeitos são negativos.

Representantes tanto de uma igreja como outra já tinham avisado a Igreja Anglicana, que é a terceira maior comunidade do mundo cristão, de que a ordenação de mulheres seria um obstáculo inultrapassável não só para a eventual reunificação, mas até para o reconhecimento da validade das ordens sacerdotais e episcopais dos anglicanos.

Segundo o arcebispo Hilário, responsável pelas relações externas da Igreja Ortodoxa da Rússia: "A introdução da instituição de mulheres bispo conduzirá à eliminação da possibilidade, mesmo que teórica, do reconhecimento da hierarquia eclesial da Igreja Anglicana".

Na mesma linha, o cardeal Kasper, em representação do então Papa Bento XVI, tinha dito já em 2008 que "a ordenação de mulheres para o episcopado bloqueia efectiva e definitivamente o reconhecimento das ordens anglicanas pela Igreja Católica".

Os avisos dizem respeito directamente à Igreja de Inglaterra, uma vez que a nível global há várias igrejas anglicanas que já ordenam mulheres para o episcopado.

As principais igrejas cristãs, como a católica e a ortodoxa, dão enorme importância à sucessão apostólica, isto é, a crença de que os bispos foram legitimamente ordenados por outros bispos legítimos, numa linha que se pode traçar directamente aos apóstolos, que por sua vez foram instituídos por Jesus.

Só um bispo com ordens válidas é que pode de facto ordenar um sacerdote ou outro bispo e só um sacerdote validamente ordenado é que pode realizar sacramentos válidos, como a consagração da Eucaristia e a absolvição, por exemplo.

O perigo de introdução de uma quebra nessa linhagem apostólica é a ordenação de padres e bispos inválidos, cujos sacramentos seriam por sua vez inválidos, prejudicando assim a Igreja como um todo.

Por um lado, a ordenação de mulheres ao episcopado em Inglaterra é uma consequência natural da ordenação de mulheres ao presbiterado, que já se faz desde 1994. Mas a diferença, do ponto de vista ecuménico, é que a existência de mulheres sacerdotes, embora não reconhecido por Roma, não afecta a ordenação de outros sacerdotes, homens ou mulheres, uma vez que só os bispos podem ordenar.

As igreja Católica e Ortodoxa consideram que a ordenação de mulheres ao sacerdócio ou ao episcopado é não só ilícita, isto é, contra as regras internas, como inválida – isto é, sem qualquer efeito prático.

Actualmente a Igreja Católica não reconhece a validade das ordens anglicanas, pelo que um sacerdote ou um bispo anglicano que abandone a sua Igreja para entrar para a Católica precisa de ser ordenado de novo. Com a ordenação de mulheres, o eventual reconhecimento da validade das ordens fica descartado o que por sua vez torna praticamente impossível qualquer esperança de reunificação das igrejas, separadas desde o século XVI.

O bispo da Igreja Lusitana, ramo português do anglicanismo, reconhece esta dificuldade, mas acredita que o diálogo ecuménico pode manter-se a outros níveis: "Neste momento o que se verifica é que a visão e a preocupação a nível ecuménico se centram noutro tipo de questões que se colocam à Igreja e que exigem um testemunho comum, como a violência, os fundamentalismos, a pobreza, todo um outro conjunto de questões, nas quais as igrejas têm dado passos muito corajosos e em conjunto", diz D. José Jorge de Pina Cabral.

Divisões internas
Mesmo internamente, esta decisão da Igreja de Inglaterra não é pacífica e entre os fiéis ingleses foi preciso garantir algumas salvaguardas para os conservadores. Assim, as comunidades que não reconhecem a validade da ordenação feminina, mesmo nas dioceses governadas por mulheres, vão poder solicitar a presença de bispos masculinos, especificamente designados para o efeito, para presidir a celebrações ou sacramentos que requeiram a presença de um bispo, tais como crismas.

Mas para muitos conservadores essa garantia não é suficiente e, por isso, ao longo dos últimos anos, pelo menos cinco bispos, dezenas de padres e centenas de fiéis abandonaram a Igreja Anglicana. Muitos aderiram ao "Ordinariato Pessoal de Nossa Senhora de Walsingham", uma estrutura criada pelo Papa Bento XVI em 2009 para acolher ex-anglicanos que quisessem manter aspectos da sua tradição litúrgica e espiritual.

Fora de Inglaterra, a nível da Comunhão Anglicana mundial, a situação agrava-se, com divisões cerradas entre as Igrejas do mundo desenvolvido, incluindo os Estados Unidos, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, a assumirem posições liberais no que diz respeito não só à ordenação feminina como à moral sexual e interpretação das Escrituras, e do outro lado as Igrejas de países asiáticos e africanos, que tendem a ser mais conservadoras.

A cisão é de tal forma grave que o actual arcebispo de Cantuária já disse que não sabe se as divisões são ultrapassáveis e nos encontros dos líderes das igrejas dos diferentes países (províncias, na terminologia anglicana) não podem concelebrar todos em conjunto, uma vez que alguns dos africanos, por exemplo, não reconhecem a legitimidade das ordens da primaz da igreja americana.

A ordenação de mulheres está longe de ser a única razão destas divisões, nem será a mais importante. As questões de fundo são teológicas e manifestam-se de forma mais acesa e pública em relação a aspectos ligados à moral sexual, como na aceitação da prática homossexual por exemplo. Nos Estados Unidos e Canadá há bispos (tanto homens como mulher) que vivem abertamente em relações homossexuais, algo que os anglicanos mais conservadores recusam aceitar.

Na qualidade de "Igreja-mãe" da Comunhão Anglicana, a Igreja de Inglaterra e o Arcebispo de Cantuária em particular, consideram ter a missão de fazer de ponte entre as diferentes sensibilidades e facções.

Esta ordenação de Elizabeth Lane, conhecida como "Libby", vem por isso colocar a Igreja de Inglaterra mais firmemente no campo liberal, o que pode vir a agravar o sentimento dos conservadores de que não existe futuro para eles e para as suas comunidades no seio da Comunhão Anglicana global.

Alguns poderão voltar-se para Roma, mas muitos dos que têm essa sensibilidade já o fizeram. A outra opção poderá ser a criação de uma nova comunhão, anglicana tradicionalista, que reúna as províncias que não aceitam a deriva liberal.