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Reportagem

Há cristãos que só hoje festejam o Natal. Com 12 pratos à mesa

07 jan, 2015 • Cristina Nascimento (texto) e Joana Bourgard (fotos)

Cristãos de rito oriental fixados em Lisboa acabam por festejar o Natal duas vezes. Para eles, o "Natal ucraniano tem mais sentido".

Há cristãos que só hoje festejam o Natal. Com 12 pratos à mesa
As portas estão abertas, os fiéis no banco, o padre no altar. Cerca de 200 cristãos estão reunidos, em Lisboa, na fria manhã de 7 de Janeiro para celebrar… o Natal.

Não é um engano. Há cristãos que só esta quarta-feira festejaram o nascimento de Jesus. São os que observam o rito oriental e guiam-se liturgicamente pelo calendário juliano (em vez do gregoriano), que tem uma diferença de 13 dias. Ou seja, na realidade, celebram o Natal também no dia 25 de Dezembro, mas, para estes cristãos, 25 de Dezembro é a 7 de Janeiro.

"Temos duas vezes festa. Quando viemos para cá, passámos a fazer também como os portugueses. Assim celebramos duas vezes o Natal – o vosso e o nosso", explica, Roman, oriundo da cidade ucraniana de Lviv.

Este mecânico de 43 anos, há 12 anos radicado em Portugal, garante que o "Natal é um tempo muito especial".

"É muito animado. Temos comida especial, diferente da dos portugueses", descreve.

Tal como no mais tradicional dos lares portugueses, as famílias ucranianas também se juntam na véspera de Natal, à volta da mesa. Em cima da mesa há 12 pratos diferentes. "Nenhum com carne, só feijão, couves, batatas", exemplifica Olga, outra ucraniana que acabou de sair da missa e conversa alegremente com os familiares e amigos.

"Temos 'borscht' (uma sopa com beterraba) e 'vareniky' (massa recheada), mas o prato principal é 'kutia' (com trigo cozido, sementes, nozes e mel)."

Desejo: fim da guerra
Roman e Olga garantem que é uma época muito alegre, animada e que, mesmo longe do país de origem, as famílias cumprem as suas tradições. Mas este ano, a alegria é menor.


Muitas mulheres trazem coloridos xailes, com flores e apontamentos brilhantes. Foto: Joana Bourgard/RR

"Este ano foi pior na Ucrânia, com a guerra no país. As pessoas estão todas muito preocupadas, muitas têm família na Ucrânia, por isso, este Natal foi mais calminho, não muito alegre", descreve Olga.

O desejo do fim da guerra terá sido, quem sabe, um dos pensamentos mais frequentes durante as quase duas horas de divina liturgia celebrada na Igreja de São Jorge de Arroios. Embora estes cristãos tenham a mesma fé dos cristãos de rito latino, há diferenças que saltam à vista durante a celebração. O padre está voltado para oriente, ou seja, de costas para a assembleia, em vez de hóstias usa-se pão levedado que, na hora da comunhão, é distribuído juntamente com o vinho. E até as crianças mais pequenas comungam.

A celebração tem muitos cânticos, entoados por um coro de 19 pessoas: nove homens e nove mulheres, dirigidos por uma décima mulher. Os casacos apertados impedem que se veja o que trazem vestido, mas dá para perceber que é dia de festa: muitas mulheres trazem coloridos xailes, com flores e apontamentos brilhantes.

"As senhoras tiram as melhores roupas, bonitas. Canta-se muito, as famílias e muitos amigos visitam-se nas suas casas. Antes de entrar, cantam as canções tradicionais do país", descreve Olga.

Ao lado, a sua filha Julia, desde os 14 anos em Portugal, garante que não foi difícil adaptar-se a este Natal a dois tempos. "Desde que cá estou tenho amigos portugueses e ucranianos, consigo festejar tanto o nosso Natal, como o português. São duas festas, mas o nosso é mais especial para nós. Não é que o português não seja, mas para nós, o ucraniano faz mais sentido", explica.

Saudades
E prendas, há? Sim, mas noutro dia. "A 19 de Dezembro, assinalamos o dia de São Nicolau e, neste dia, as meninas e os meninos recebem prendas. Depois, claro, quem quiser, pode também trocar prendas na altura do Ano Novo, depende da família", explica Roman.

Mas se o Natal dos portugueses acontece quando as escolas estão fechadas, o Natal dos cristãos de rito oriental calha num altura em que as festas já terminaram. "As crianças faltam meio dia à escola, mas é uma vez por ano", desvaloriza Olga, cujo patrão já sabe que este é um dia especial e, como tal, permitiu-lhe gozar o dia sem ir trabalhar.

Julia graceja com uma amiga com a vivacidade própria dos 24 anos. "Apesar de estar cá há muitos anos, sinto saudades. As tradições são muito mais sentidas lá na Ucrânia e, apesar de já termos a maior parte da família cá, temos alguma família e as saudades existem sempre", afirma.

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