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Reportagem

Um dia na terra dos amish, longe do "meio do mundo"

07 jan, 2015 • Filipe d'Avillez, no Michigan

Parecem esquecidos pelo tempo, mas procuram viver uma vida inteiramente guiada pelos valores cristãos, como o perdão, aplicado mesmo quando mais custa. "Nunca tive vontade de ir para o meio do mundo", diz um membro da comunidade.

Um dia na terra dos amish, longe do "meio do mundo"
Parecem esquecidos pelo tempo, mas procuram viver uma vida inteiramente guiada pelos valores cristãos, como o perdão, aplicado mesmo quando mais custa. "Nunca tive vontade de ir para o meio do mundo", diz um.
O tempo está ameno, os campos de milho são de perder de vista, interrompidos por lojas tradicionais e explorações agrícolas. Ao longe, um agricultor aparece na estrada, com longas barbas, sem bigode, chapéu na cabeça e roupa escura. Sem qualquer pressa, vai conduzindo o cavalo que lhe puxa a carroça.

Uma viagem ao passado? Não: um dia passado entre os amish, uma comunidade cristã que rejeita as tecnologias modernas e procura viver em simplicidade, reservando-se sobretudo à própria comunidade e ao trabalho da terra.

A primeira paragem nesta zona rural do Michigan, nos Estados Unidos, é numa queijaria detida por "ingleses" (como os amish chamam aos de fora da sua comunidade), mas que emprega vários homens e mulheres amish e compra matéria-prima das quintas ali à volta.

Da queijaria recebemos indicações para chegar a casa do bispo Eli Miller, um dos poucos que costuma aceitar conversar com jornalistas. Encontramo-lo dentro da sua oficina, onde vende ferragens e material para a agricultura, a conversar com alguns jovens no seu dialecto, conhecido como "Holandês da Pensilvânia".

Recebe-nos bem, pedindo apenas que evitemos filmá-lo de frente. Quer desmistificar o estilo de vida a que adere livremente. "Tentamos seguir os princípios bíblicos o mais de perto que conseguimos. Mas somos como qualquer outra comunidade, temos também as nossas limitações".

Dez filhos, 85 netos
Os amish são uma comunidade protestante, descendente de cristãos da zona da Holanda que tiveram de fugir da Europa, por causa da perseguição religiosa. Encontraram na América, sobretudo nos EUA e Canadá, mas também no México e nalguns países da América do Sul, a tranquilidade de poderem viver a sua religião sem interferências. Não usam automóveis, não têm frigoríficos, não gostam de se deixar filmar ou fotografar.

Mas ao contrário do que alguns pensam, os amish não se isolam completamente dos seus vizinhos não-amish. Pelo contrário, dependem largamente deles para muitas coisas. Sempre que há uma viagem mais longa a realizar contratam "ingleses" para os conduzir de carro. Homens amish servem lado a lado com "ingleses" nas corporações de bombeiros.

Já idoso, com a memória a traí-lo em muitos detalhes, Eli Miller admite que nunca lhe passou pela cabeça abandonar esta vida. "Nunca tive vontade de ir para o meio do mundo. Fui educado por pais cristãos, que me ensinaram a não fazer essas coisas e procurei seguir esse exemplo."

No que diz respeito à família seguiu, de facto, o exemplo amish. Teve dez filhos, um dos quais morreu cedo, e tem actualmente cerca de 85 netos. "As coisas animam-se bastante quando a família alargada se junta", conta. Mostra um sorriso de avô satisfeito.

Apesar das tentações que o mundo lhes apresenta, poucos são os amish que saem da comunidade. Rodeado de três rapazinhos, apenas um terço da sua prole, Rudy Byler, que vive a poucos quilómetros do bispo Miller, explica que essa é sempre uma preocupação.

"Nós esperamos que os nossos filhos queiram este estilo de vida, tentamos ensiná-los a aceitá-lo, mas claro que essa será uma escolha deles. Muito poucos saem, mas acontece. Não podemos fazer nada em relação a isso para além de lhes ensinar aquilo que nos foi ensinado a nós".

Aqueles que realmente saem tendem a ter dificuldades em adaptar-se a um mundo largamente desconhecido. Mas se sair não é fácil, entrar é praticamente impossível: "Sei de alguns casos, mas na maioria das vezes não corre bem. Alguns ficam um par de anos, mas acabam por sair".

Estilo de vida ameaçado
Os amish tentam ao máximo preservar o estilo de vida que têm desde que os seus antepassados anabaptistas chegaram à América, fugidos das perseguições religiosas na Europa.

Durante séculos os obstáculos foram poucos: o Governo respeita o seu modo de vida e as comunidades tendem a ocupar-se apenas dos seus assuntos. Mas as alterações económicas são agora uma ameaça para um povo que vive sobretudo do cultivo da terra.

"A maioria de nós está na agricultura", diz Rudy, que tem também feito algum trabalho de carpintaria entre os "ingleses". "Mas é cada vez mais difícil, financeiramente, viver da agricultura hoje em dia. Para os nossos jovens é muito mais complicado comprar uma quinta e fazer agricultura".

As consequências para a comunidade são imprevisíveis porque o trabalho no exterior pode vir acompanhado de tentações: "Desencorajamos os nossos jovens de trabalhar em fábricas. Tentamos ter as nossas próprias lojas. É mais fácil manter os jovens na fé se o conseguirmos".

Conciliar o isolamento a que se votam com o mandamento cristão de ir por todo o mundo evangelizar não é fácil, admite Rudy Byler.

Explica que, à sua maneira, os amish também ajudam na evangelização. "Não saímos à procura de converter pessoas que não cresceram com este estilo de vida. Mas quanto a pregar a todas as nações, contribuímos para a Christian Aid Ministries, que faz esse trabalho. Apoiamo-los, mas nós não saímos muito. Tentamos viver em comunidade, mas não afastaríamos ninguém que se mostrasse interessado na nossa fé."

Tragédia e perdão
Ocasionalmente a vida tranquila dos amish é interrompida e os seus membros colocados no centro das atenções do resto do mundo. Mas nenhuma ocasião terá sido tão cruel e repentina como o massacre, em 2006, de cinco meninas da comunidade, baleadas por um vizinho "inglês", traumatizado pela morte da sua própria filha, anos antes.

Charles Roberts entrou na escola primária da comunidade de Nickel Mines com uma arma na mão e mandou todos os rapazes sair. Eles esperaram na rua, a rezar o Pai Nosso, enquanto Roberts matava a sangue frio cinco das meninas, ferindo gravemente outras cinco.

O crime chocou os americanos, mas poucos estavam preparados para o que surgiu a seguir, com relatos de grupos de homens a chegar à casa dos familiares de Roberts não para pedir vingança, mas para estender a mão em perdão e reconciliação.

Os amish não têm seguros de saúde, preferindo cuidar uns dos outros, mas, perante tanta insistência dos "ingleses" em querer ajudar financeiramente as famílias das meninas que tinham ficado feridas, acabaram por ceder a abriram uma conta para recolher donativos, impondo uma condição: o dinheiro deveria servir também para ajudar a mulher e os filhos de Roberts.

O mundo olhava estupefacto para esta prova de valores cristãos em acção, mas os amish não compreendiam a admiração. E ainda não compreendem. "Não fiquei surpreendido, a nossa comunidade teria feito a mesma coisa", diz Rudy Byler.

E explica: "Temos de nos perdoar uns aos outros para podermos ser perdoados. Se alguém nos maltrata, não tentamos retaliar ou ajustar contas. É assim que somos educados e tentamos viver de acordo com essa regra".