Emissão Renascença | Ouvir Online

Entrevista

"Assad tem falhas, mas é melhor que o Estado Islâmico"

06 nov, 2014 • Filipe d’Avillez

"Pelo menos sabemos que no seu regime os cristãos são livres de prestar culto e construir igrejas", diz o arcebispo libanês Issam John Darwish. "Os cristãos adaptam-se melhor à democracia porque gostam da democracia."

"Assad tem falhas, mas é melhor que o Estado Islâmico"

A queda do regime na Síria seria uma má notícia para os cristãos da região, diz o arcebispo Issam John Darwish, da diocese de Furzol, Zahle e Bekaa, no Líbano.

O Líbano é o país com maior proporção de cristãos no Médio Oriente, o que o torna particularmente aberto à democratização, considera o arcebispo, que pertence à Igreja Melquita, uma Igreja católica de rito oriental.

Em entrevista à Renascença, o arcebispo fala também da situação política dos cristãos o Líbano e rejeita que o futuro passe por alianças específicas com sunitas ou com xiitas. Defende que os cristãos sejam uma ponte entre as duas comunidades.

Qual é a situação da liberdade religiosa no Líbano?
No mundo árabe existem algumas dificuldades em termos de liberdade religiosa. Mas começo pelo Líbano: não temos problemas porque temos total liberdade de culto. Temos 18 confissões religiosas oficiais e todos são livres. Também o poder político está dividido entre as 18 comunidades

Na Síria e no Iraque a constituição permite a liberdade religiosa, mas, de facto, se houver um casamento misto entre um muçulmano e um cristão tem de ser registado como muçulmano.

Noutros países árabes é muito difícil. Nos países do Golfo começaram a permitir a construção de igrejas, mas na Arábia Saudita, por exemplo, os cristãos não se podem identificar como tal. A Primavera Árabe não trouxe quaisquer avanços para o mundo árabe, nem em termos de democracia, nem de liberdade religiosa. Mas esperamos que, no futuro, depois do que se está a passar na Síria e no Iraque, possamos ter um Islão transparente, viver lado a lado e prestar culto como quisermos.

Como é que são as relações entre os cristãos no Líbano?
Existe diálogo entre as comunidades cristãs e vivemos lado a lado, como irmãos.

Mas politicamente existem dois partidos cristãos, um aliado com os xiitas e outro com os sunitas. Isso não enfraquece a voz dos cristãos?
Não me parece, porque a mentalidade dos cristãos é mais democrática. A diversidade na comunidade cristã é benéfica para o país. É por isso que tentámos evitar a guerra, tentamos fazer parte da sociedade e gostamos de estar juntos. Temos boas relações tanto com sunitas como xiitas, vivemos juntos, participamos nas festas uns dos outros, tentamos ajudar estes muçulmanos a levantar a voz contra os radicais que vemos no Iraque e na Síria.

A maioria das ameaças aos cristãos parece vir de facções sunitas radicais. O futuro do cristianismo no Médio Oriente poderá estar ligado aos xiitas?
Penso que devemos estar próximos tanto de uns como de outros, sunitas e xiitas. Somos uma ponte entre as comunidades e gostaríamos de desempenhar este papel de os aproximar.

O Hezbollah continua a ter o seu próprio exército e tem resistido a qualquer tentativa de desmilitarizar. Como é que os cristãos encaram o facto de haver um partido com o seu próprio exército?
A maioria dos cristãos agora aceita a presença do Hezbollah, porque eles têm defendido as aldeias cristãs na Síria, como Maaloula. Maaloula foi libertada pelo Hezbollah e outras aldeias cristãs na Síria também. É por isso que agora vemos o Hezbollah como uma resistência contra Israel e contra os jihadistas na Síria, sobretudo contra o Estado Islâmico.

Se o regime sírio caísse, como é que isso afectaria o Líbano?
Seria um grande problema para os cristãos no Líbano e na Síria. Sabemos que os xiitas são influenciados pelo Irão e os sunitas pela Arábia Saudita. Quando os problemas começaram no Egipto começámos logo a ter problemas no Líbano e na Síria. Por isso, o mês passado, pedi a uns ministros egípcios para usarem a sua influência sobre os sunitas no Líbano, porque sei que o Islão egípcio é mais moderado que o da Arábia Saudita.

Como é que o Líbano tem conseguido evitar ser arrastado para o conflito na Síria até agora?
Desde o início da guerra que digo para haver cuidado porque os libaneses vão ser afectados pela guerra na Síria. E já somos… Os jihadistas, o Estado Islâmico, a frente Al-Nusra estão junto à fronteira do Líbano. Estão nas montanhas, não muito longe da minha vila, Zahle. Todos os dias há combates entre o exército libanês e os jihadistas. O Hezbollah também defende as fronteiras, juntamente com o exército.

Mas o Governo tem sido muito sensato, tanto sunitas como xiitas e o Governo trabalham em conjunto para evitar os grandes problemas no Líbano.

Os cristãos libaneses foram os únicos que, durante os conflitos, criaram milícias. Que lições é que isso traz para os cristãos que estão a ser perseguidos actualmente no Médio Oriente?
Penso que não devemos ter milícias. Aprendemos com o passado que este não é o caminho para a paz. O caminho para a paz passa pelo diálogo entre as comunidades. As armas não ajudam a conquistar a paz. É por isso que os partidos libaneses são todos contra a criação de milícias no Líbano.

Nasceu na Síria, como é que a guerra o tem afectado?
Ainda tenho família em Damasco. Estou muito preocupado. Apelo aos chefes de Estado na Europa para que deixem de enviar armas para a Síria e o Iraque, para tentarem compreender melhor os problemas, para compreenderem melhor a nossa forma de democracia. Nós não podemos ter democracia de estilo europeu. O mundo árabe tem de começar a pensar como desenvolver a sua própria forma de democracia, talvez no futuro próximo isso seja possível.

Diz que a democracia ocidental não funciona no mundo árabe, mas o Líbano tem uma democracia funcional…
Metade da população do Líbano é cristã e os cristãos adaptam-se melhor à democracia porque gostam da democracia. Mesmo os muçulmanos libaneses estão aptos a ter uma democracia porque o Líbano é um estado único, o único do mundo árabe a ter um Presidente cristão [por imposição constitucional].

Disse que seria mau para os cristãos se o regime cair na Síria, mas pensa que existe um futuro para Bashar al-Assad no poder?
Eu não gostaria de ver o Estado Islâmico a tomar a posição de Assad. Apesar de todas as suas falhas, Assad é melhor que o Estado Islâmico e que o Al-Nusra e outros jihadistas. Pelo menos sabemos que no seu regime os cristãos são livres de prestar culto e construir igrejas. O Governo até deu alguma terra para ajudar a construir mosteiros e igrejas. Penso que, se olharmos bem, é mais fácil para os cristãos viverem na Síria do que noutros países árabes. À excepção do Líbano, claro.