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Entrevista

"Paulo VI tinha esta contradição: um coração à esquerda e uma cabeça à direita"

17 out, 2014 • Filipe d'Avillez

D. Manuel Clemente recorda o Papa Paulo VI, que vai ser beatificado no domingo e que marcou de forma muito significativa a Igreja e o mundo do seu tempo.

"Paulo VI tinha esta contradição: um coração à esquerda e uma cabeça à direita"
O Papa Paulo VI marcou muito a juventude de figuras da Igreja como o actual Patriarca de Lisboa. Em entrevista à Renascença, D. Manuel Clemente recorda o homem que “sabia o que seria o concílio” e que “tinha a cabeça à direita e o coração à esquerda”.

Paulo VI, o primeiro Papa a visitar Fátima, é beatificado pelo Papa Francisco no domingo, dia em que termina o sínodo para a família, que decorre em Roma.

Desde a sua influência no desenrolar do Concílio Vaticano II às relações difíceis com Portugal, o Patriarca de Lisboa comenta os principais aspectos da vida do novo beato.

Paulo VI é eleito numa altura crítica para a Igreja, já tinha sido convocado o Concílio Vaticano II. O que é que leva os cardeais a escolhê-lo a ele? O concílio teria sido diferente se ele não tivesse sido eleito?
O Cardeal Montini, que foi eleito Paulo VI em 1963, já era muito falado. Mas a sua promoção ao cardinalato tardou até por pedido dele ao Papa Pio XII para se manter a trabalhar com ele na Secretaria de Estado. Mas já era um nome muito falado, como arcebispo de Milão tinha sobressaído muito.

Ele foi determinante, não para a convocação do Concílio, isso foi João XXIII, mas para a continuação do Concílio e até para a definição do Concílio.

Não há dúvida que até a convocação do Concílio foi um momento de Graça para uma Igreja que precisava, como ele dizia, de se “aggiornare”. “Aggiornamento” não é bem actualizar, significa ligar-se à actualidade.

Mas o concílio o que é que seria? João XXIII tinha esta inspiração, era preciso juntar o episcopado mundial e que todos pensassem e se abrissem ao que o Espírito dissesse.

Mas depois ele morre em Junho de 63, no final da primeira sessão, e quando um Papa morre o Concílio continua ou não continua conforme a decisão da cabeça do Colégio Episcopal, que é o novo Papa.

O Papa Paulo VI sabia o que o Concílio havia de ser. Havia de ter como tema a Igreja, ou seja, o que somos como Igreja de Cristo no mundo, para Deus e para o mundo. E depois, com muito esforço e com muita contradição externa, levou por diante a aplicação do Concílio até 1978, quando Deus o levou.

Ficou conhecido como o Papa Peregrino...
João XXIII foi a Loreto e a Assis, nas vésperas do Concílio, mas foi Paulo VI que teve essa urgência de estar próximo e de ir aos vários continentes, da ONU às Filipinas, Israel, Terra Santa, até a Fátima em 1967 e nesse sentido abriu esse ciclo de viagens papais que aparecia muito no ministério de Pedro das Igrejas locais e do mundo em geral.

OFalou da visita a Fátima, que foi uma viagem com alguma polémica. Como é que era a relação dele com Portugal?
Havia naquela altura um contencioso com o Governo português, que tinha a ver com três questões.

Uma questão que ficou por resolver: o Governo português não dar autorização para o regresso de D. António Ferreira Gomes, o Bispo do Porto, com pressão do Governo para que a Santa Sé o substituísse, coisa que nunca fez.

Depois, havia a ida de Paulo VI à India, em 1964, ao Congresso Eucarístico. A União Indiana tinha tomado Goa pouco tempo antes e o Governo português não gostou que o Papa tivesse ido à India nessa altura.

E também a atitude da Santa Sé em relação aos movimentos autonomistas das colónias portuguesas, que era de relativa abertura às suas reivindicações.

Por isso a visita não incluiu passagem por Lisboa, a capital, não foi uma visita de Estado, foi uma peregrinação a Fátima no cinquentenário das aparições, desembarcar perto de Leiria, ir a Fátima e voltar ao aeroporto, com alguma contenção.

Era natural, era o tempo e toda a gente o entendeu nesse sentido, mas sobretudo para nós que assistimos e participámos foi um motivo de grande contentamento ver um Papa em Portugal. Nessa altura era uma coisa não só rara como nunca vista, mas vimos com muito gosto e para nós foi muito bom.

Apanha uma fase essencial da sua juventude. Que influência teve para si?
Muito grande. Antes de mais pela figura, pela dimensão humana e espiritual, pelo amor que manifestava pela Igreja, pela capacidade de resistir que teve a tantas coisas que não se somaram positivamente a seguir ao Vaticano II, contradições, divisões internas, o cisma lefebvriano, as deserções na vida da Igreja, do sacerdócio, da vida religiosa, e ele mantém-se no meio daquilo tudo com uma consistência interior que transparecia já na televisão.

A aplicação do concílio, a persistência, o levar à prática desde a vida interna à liturgia, às intenções e propostas conciliares. A sua reflexão, a clareza das encíclicas e dos documentos, a sua ida à ONU, na qual declarou a Igreja perita em humanidade, o seu brado em Fátima (“Homens sede homens e lutai por todas as causas da humanidade.”).

Um amigo dele, filósofo francês, dizia que era um homem que tinha esta contradição: um coração à esquerda e uma cabeça à direita. Cabeça arrumada na formatação teológica tradicional e um coração sempre propenso às grandes causas da humanidade. Até isso o tornava particularmente simpático.

Tudo o que era Paulo VI e girava à volta de Paulo VI – uma autenticidade, uma força evangélica, uma persistência, um amor, uma paixão à Igreja e a Jesus Cristo e à humanidade em geral – caía muito bem entre a juventude militante, em que também me integrava.

Paulo VI está associado a um dos documentos mais discutidos na Igreja, a encíclica “Humanae Vitae”.
O que o Papa Paulo VI quis defender na “Humanae Vitae”, acerca da transmissão da vida, foi aquilo que, parecendo negativo, dizendo não aos métodos artificiais de regulação da fecundidade e da geração da vida, afinal de contas vai muito ao encontro de uma grande aspiração contemporânea e que em termos de ecologia é muito bem aceite.

O que é que a proposta ecológica nos propõe? Propõe-nos que tenhamos um sentido global da vida, da natureza e da relação com todas as coisas. Por que é que quando se trata da vida humana e da fisiologia de cada um pode valer tudo, por mais artificial que seja? Paulo VI, na “Humanae Vitae”, alerta sobretudo para esta contradição, e nesse sentido ele é profético.

Há aqui um pensamento, como se diz agora, holístico, do conjunto, que está profetizado na “Humanae Vitae”. Devemos lê-lo com mais cuidado.

[Notícia corrigida às 17h21]