Tempo
|

Do consenso à polémica. Os grandes temas do sínodo da família

29 set, 2014 • Filipe d'Avillez

Casamento, moral sexual e evangelização tendo como ponto de partida a família. São alguns dos temas que bispos de todo o mundo e o Papa vão reflectir a partir de domingo.

Do consenso à polémica. Os grandes temas do sínodo da família
O sínodo dedicado à família começa já no próximo domingo, no Vaticano, decorrendo até ao dia 19. Trata-se do arranque de um processo longo que culminará com um novo sínodo dedicado ao mesmo assunto, em 2015, e que pelo meio contará ainda com o Encontro Mundial de Famílias, nos EUA, no qual o Papa Francisco participa.

As conclusões destas reflexões dos bispos e especialistas só devem ser conhecidas após a publicação de uma exortação pós-sinodal que, provavelmente, resumirá os dois sínodos e, por isso, não deve surgir antes de 2016.

A Renascença destaca alguns dos principais temas que serão discutidos pelos padres sinodais e os peritos e auditores convidados. A evangelização, o acesso aos sacramentos por parte de divorciados a viver em segundas uniões e os processos de nulidade são alguns dos pontos que devem ocupar mais a ordem dos trabalhos.

Evangelização
A Igreja vive da evangelização e para a evangelização. O papel das famílias como agentes e alvos de evangelização é por isso uma preocupação que será transversal a todos os trabalhos do sínodo e que está reflectido no próprio título: “Os desafios pastorais da família no contexto da evangelização”.

A Igreja manifesta a esperança de que as famílias venham a desempenhar um papel mais activo na evangelização nas suas localidades.

“Evidencia-se a importância de uma estreita colaboração entre as famílias/casas e a paróquia, na missão de evangelizar, assim como a necessidade do envolvimento activo da família na vida paroquial”, diz um documento preparado pelo Vaticano que serve de base às reflexões durante o sínodo.

O texto, que tem em conta as respostas ao inquérito aos católicos lançado pela Igreja, destaca de forma especial a forma como a dinâmica de movimentos eclesiais voltados para a família têm contribuído nesse sentido.

“As famílias pertencentes a estas comunidades desempenham um apostolado vivo e têm evangelizado muitas outras famílias; os seus membros ofereceram um testemunho credível da vida matrimonial fiel, de estima recíproca e de unidade, de abertura à vida”, aponta o documento.

Compreensão da doutrina por parte dos leigos
Uma das grandes preocupações manifestadas pela Igreja na preparação deste sínodo é o desconhecimento manifestado pelos leigos em relação aos ensinamentos da Igreja que digam respeito à família.

No instrumento de trabalho do sínodo pode ler-se: “O conhecimento dos documentos conciliares e pós-conciliares do Magistério sobre a família, por parte do povo de Deus, parece ser geralmente escasso. Sem dúvida, há um certo conhecimento deles por parte dos especialistas em âmbito teológico. Contudo, estes textos não parecem permear profundamente a mentalidade dos fiéis. Há também respostas que reconhecem com muita franqueza o facto de que tais documentos, entre os fiéis, não são minimamente conhecidos.”

Mais, continua o documento, a culpa desta falta de conhecimento é por vezes dos padres: “De algumas observações recebidas, pode-se deduzir como os pastores, por vezes, se sintam inadequados e impreparados para tratar problemáticas que se referem à sexualidade, à fecundidade e à procriação, de modo que, muitas vezes, se prefere não enfrentar estes temas. Nalgumas respostas, encontra-se também uma certa insatisfação em relação a alguns sacerdotes que parecem indiferentes em relação a alguns ensinamentos morais. O seu desacordo com a doutrina da Igreja gera confusão entre o povo de Deus.”

A Igreja reconhece que de nada serve estar a fazer sínodos ou a publicar grandes documentos sobre assuntos ligados à família se estes depois não chegam de facto às famílias.

Como fazer chegar a doutrina aos fiéis deve ser um dos assuntos a preocupar os padres sinodais durante os trabalhos do sínodo.

Moral sexual
As questões ligadas à moral sexual serão também alvo da atenção dos participantes do sínodo, uma vez que são centrais à vida conjugal e familiar.

Sobre este assunto os inquéritos feitos antes do sínodo revelam a existência de muita ignorância por parte dos fiéis. Contudo, o instrumento de trabalho não assume por isso que esses documentos não são importantes, pelo contrário, reflecte sobre as formas como podem ser mais bem divulgados.

Não se devem esperar quaisquer inovações doutrinais ou disciplinares sobre este assunto, como por exemplo uma reavaliação da posição da Igreja sobre a contracepção, mas antes um debate sobre como levar os ensinamentos e as verdades da Igreja a todos os casais que, de momento, os ignoram ou não os consideram relevantes.

“Um bom número de conferências episcopais observa que, onde é transmitido em profundidade, o ensinamento da Igreja com a sua genuína beleza, humana e cristã, é aceite com entusiasmo por grande parte dos fiéis. Quando se consegue mostrar uma visão global do matrimónio e da família segundo a fé cristã, então apercebemo-nos da sua verdade, bondade e beleza. O ensinamento é aceite em maior medida onde há um caminho real de fé por parte dos fiéis, e não só uma curiosidade momentânea sobre o que a Igreja pensa acerca da moral sexual”, diz o texto.

Parte deste debate será centrado na forma como o próprio clero deve abordar o assunto com as famílias, como se lê ainda no instrumento de trabalho: “De algumas observações recebidas, pode-se deduzir como os pastores, por vezes, se sintam inadequados e impreparados para tratar problemáticas que se referem à sexualidade, à fecundidade e à procriação, de modo que, muitas vezes, se prefere não enfrentar estes temas.”

Preparação para o casamento
A preparação para o casamento será certamente um dos temas a que os bispos e outros participantes se vão dedicar. Perante uma realidade, sobretudo no mundo ocidental, em que o divórcio é cada vez mais comum e aceite, todos reconhecem que a Igreja tem de encontrar formas de tentar consciencializar os que procuram casar-se catolicamente para as responsabilidades que estão a assumir.

Em muitos países, como Portugal, é obrigatório os casais fazerem um curso de preparação para o casamento, ministrado por grupos ou pessoas ligadas à Igreja. Contudo, não existe um formato padrão para estes cursos. Nalguns casos podem ser apenas uma tarde, noutros são um fim-de-semana e noutros ainda duram várias semanas.

O documento de trabalho descreve os objectivos destes cursos assim: “A promoção da relação do casal, com a consciência e a liberdade da escolha; o conhecimento dos compromissos humanos, civis e cristãos; a retomada da catequese da iniciação, com o aprofundamento do sacramento do matrimónio; o encorajamento a que o casal participe na vida comunitária e social.”

Dentro da Igreja há duas tendências de pensamento sobre este assunto.

Por um lado, há quem sinta que é necessário ser mais rigoroso com as preparações, podendo mesmo negar mais frequentemente o casamento pela Igreja a quem não aparente estar preparado.

Por outro lado, e tendo em conta que na teologia da Igreja Católica Romana os ministros do sacramento do matrimónio são os próprios noivos, há quem considere que a Igreja não tem a autoridade de colocar demasiados obstáculos a pessoas adultas e esclarecidas que queiram ver os seus casamentos reconhecidos pela Igreja.

Nulidade do casamento
O sínodo tem gerado muitos debates acesos, mas se há uma coisa sobre a qual a maioria dos especialistas e bispos parece estar de acordo é com a necessidade de agilizar os processos de declaração de nulidade.

O casamento católico requer uma série de condições que, se não forem preenchidas na altura do casamento, inviabilizam o mesmo. Por exemplo, um casal tem de estar disposto a ter filhos. Caso se descubra que, no dia do casamento, um dos membros do casal estava decidido, conscientemente, a não ter filhos, isso torna todo o casamento inexistente. O mesmo se aplica no caso de um dos parceiros revelar que nunca teve intenção de ser fiel ao outro ou, por exemplo, se se comprovar que pelo menos um dos dois não tinha suficiente maturidade psicológica para ter noção do compromisso que estava a assumir.

Ao contrário do divórcio, em que um casamento válido é interrompido, os casos de nulidade reconhecem que aquele matrimónio nunca o foi, de facto. A Igreja leva muito a sério os processos de nulidade, precisamente para evitar abusos. Esse cuidado, associado ao facto de em algumas dioceses não existirem recursos humanos suficientes para tratar das questões processuais, leva a que alguns casos de declaração de nulidade demorem muito tempo a serem concluídos. Esta tem sido uma preocupação ao longo dos últimos anos, com o aumento de pedidos feitos, mas é natural que os bispos proponham formas de tornar os processos ainda mais eficazes e rápidos.

O instrumento de trabalho fala na necessidade de se explicar melhor aos fiéis o que é e o que implica a declaração de nulidade de um casamento: “Uma formação mais adequada dos fiéis em relação aos processos de nulidade ajudaria, em determinados casos, a eliminar dificuldades, como por exemplo a de pais que receiam que um matrimónio nulo torne ilegítimos os filhos – indicada por algumas conferências episcopais africanas. Em muitas respostas insiste-se sobre o facto de que simplificar o processo canónico só é útil se se enfrentar a pastoral familiar de modo integral.”

Acesso aos sacramentos
A questão do acesso aos sacramentos por parte de pessoas em situações irregulares – como segundas uniões – é talvez a que mais polémica e discussão tem levantado até ao momento e também aquela à qual a comunicação social tem dado maior atenção na antecipação do sínodo.

Actualmente a Igreja não permite que pessoas a viver em segundas uniões possam receber os sacramentos, nomeadamente o baptismo, a confissão, o crisma ou a eucaristia, a não ser que tenha por intenção viver em castidade ou pôr fim à situação irregular. Em casais em que apenas um já tinha sido casado pela Igreja, a proibição aplica-se a ambos.

Isto deve-se ao facto de a Igreja, segundo os ensinamentos de Cristo, não reconhecer a dissolução dos casamentos. Logo, quem vive numa segunda união depois do fracasso do seu primeiro casamento encontra-se, aos olhos da Igreja, numa relação adúltera, isto é, a viver em pecado mortal.

A Igreja sempre ensinou que quem vive em pecado mortal não deve comungar, daí a proibição.

Alguns cardeais já discutiram publicamente sobre este assunto. O Cardeal Walter Kasper tem sido um dos principais promotores de uma mudança disciplinar nesta questão que, não colocando em causa o princípio da indissolubilidade do casamento, permita às pessoas que se encontram nessas situações poder, após um período de penitência, voltar a comungar.

Mas outros, incluindo o influente prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o Cardeal Müller, argumentam que não é possível alterar essa prática sem atropelar a doutrina católica da indissolubilidade e do impedimento de comungar em estado de pecado mortal.

O debate continuará certamente durante as sessões do sínodo mas o instrumento de trabalho, nos seus pontos 93, 94 e 95 já dá conta das opiniões divergentes entre os fiéis, notando que há mesmo quem abandone a Igreja por causa deste assunto.

Acompanhe o sínodo da família na Renascença. Notícias, entrevistas e análise.