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Abel Varzim, um padre "como Jesus Cristo"

20 ago, 2014 • Eunice Lourenço, com Aura Miguel e Isabel Pacheco

Passam 50 anos da morte do padre que foi deputado, impulsionou a Liga Operária Católica, esteve na fundação da Renascença e ajudou os pobres e as prostitutas do Bairro Alto. Despertou consciências. Foi um homem à frente do seu tempo.

Abel Varzim, um padre "como Jesus Cristo"
Entrou em “casas onde os padres não entram”, “como Jesus Cristo em casa dos publicanos e dos pecadores nas casas”. O padre Abel Varzim, falecido há 50 anos, entrou nas casas das prostitutas do Bairro Alto para as confessar e lhes dar a Santa Unção.

Para o padre João Seabra, actual prior da Encarnação, entre o Chiado e o Bairro Alto, onde o padre Abel Varzim chegou no início da década de 1950, já com um longo percurso de envolvimento social, esse trabalho com mulheres ignoradas ou olhadas de lado pela generalidade dos católicos do seu tempo foi a “coisa mais notável e inovadora” que o seu antecessor fez.

Abel Varzim da Cunha e Silva, que nasceu a 20 de Abril de 1902 e morreu a 20 de Agosto de 1964, foi uma figura marcante no catolicismo português e na vida dos leigos da diocese de Lisboa.

Doutorou-se em Lovaina, na Bélgica, em Ciências Político-Sociais e, regressado a Portugal em 1934, começa um trabalho de envolvimento com o movimento operário.

Envolve-se na criação da Liga Operária Católica, de que foi assistente, na fundação da Rádio Renascença, no jornal “O Trabalhador” e no Instituto de Serviço Social, onde chegou a dar aulas.

Raquel Ribeiro, hoje com 89 anos e uma vida ligada à acção social, foi sua aluna, mas recorda que, no primeiro ano, o padre Varzim foi suspenso, logo depois da primeira lição, devido às pressões políticas. No ano seguinte, voltaria por insistência do cardeal Cerejeira.

Entre 1938 e 1942, foi deputado à Assembleia Nacional, onde, segundo o padre João Seabra, defendeu “uma concepção verdadeiramente cristã do corporativismo”, por oposição ao corporativismo de Estado, e foi uma voz da doutrina social da Igreja. Não seria reconduzido no cargo.

Prior do Bairro Alto
Por sucessivas pressões políticas, Abel Varzim é afastado do movimento operário e colocado na Igreja da Encarnação, no Chiado, em Lisboa, às portas do Bairro Alto, então uma das zonas de prostituição tolerada, mas também uma paróquia onde vivia “gente da mais fina flor”, como ele próprio escreveu.

“Na Encarnação, foi um padre modernizador”, diz João Seabra. Recuperou a igreja e adaptou-a às necessidades. “Aproveitou muitos equipamentos para fazer coisas sociais”.

“A Encarnação, ao lado da capela dos Santíssimo, por exemplo, tinha uma capela do senhor dos Passos. Ele tirou de lá o Senhor dos Passos, pôs o Senhor dos Passos na igreja, fechou a porta de comunicação entre a capela e a igreja, abriu a porta para a rua e pôs lá um posto médico”.

“Naquele tempo em que não havia nenhuma forma de segurança social e em que a maioria das pessoas não tinha acesso a cuidados de saúde, isso teve uma importância imensa na paróquia”, recorda o actual prior da Encarnação.

Mas, para o padre João Seabra, o mais notável foi o trabalho do padre Abel Varzim com as prostitutas, um trabalho que “quebrou conceitos e preconceitos” e passou por várias fases, como o próprio conta no seu livro “Procissão dos Passos”.

Quando chegou, quis “exorcizar o problema” e construiu, à entrada da igreja, uma capela dedicada a santa Maria Goretti, recém-canonizada como símbolo de pureza, onde as prostitutas iam rezar. Um dia, foi chamado para dar a Santa Unção uma dessas mulheres, que estava a morrer, e indignou-se por a terem colocado nas escadas. Insistiu em entrar “onde os padres não entravam”, como Cristo entrou nas casas dos pecadores e dos publicanos. 

"Um homem à frente do seu tempo"
Ao mesmo tempo que ia desenvolvendo o seu trabalho com os pobres e os marginalizados, que Raquel Ribeiro também chegou a acompanhar, quando começou a trabalhar na Santa Casa da Misericórdia, o padre Abel Varzim ia despertando e agitando as consciências dos seus paroquianos. E voltava a ter problemas com o regime.

“A igreja enchia-se com gente que o vinha ouvir e enchia-se também com os ‘vizinhos’ da António Maria Cardoso [sede da PIDE], que queriam ouvir o que ele dizia. Iam ouvir as homilias dele, não tanto para rezarem e se converterem, mas para fazer relatórios semanais sobre a sua pregação”, conta o padre João Seabra.

A pressão foi aumentando e, a certa altura, o Patriarca Cerejeira “entendeu que, pastoralmente, era melhor pedir-lhe que renunciasse à paróquia”. O padre Abel Varzim voltou para sua terra natal, Cristelo, no concelho de Barcelos, e “viveu na sua aldeia um certo exílio interno nos últimos anos da sua vida”. 

Neste "exílio", também deixou obra. Hoje, é lembrado no nome que dá à rua principal da freguesia, mas também pela sua família, como é p caso do seu sobrinho Álvaro Varzim, para quem o padre Abel foi “um homem à frente do seu tempo e muito perto de Deus”.