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Morreu D. Eurico Dias Nogueira

19 mai, 2014 • Filipe d’Avillez

Crítico do comunismo e vigiado pela PIDE, arcebispo emérito de Braga serviu longamente a Igreja. O funeral realiza-se na quarta-feira.

Morreu D. Eurico Dias Nogueira
Com a morte de D. Eurico Dias Nogueira, Portugal perde a sua última ligação directa ao Concílio Vaticano II, bem como uma voz irreverente que nunca deixou de se fazer ouvir quer dentro quer fora da Igreja. Crítico do comunismo e vigiado pela Pide, arcebispo emérito de Braga serviu longamente a Igreja. O arcebispo emérito de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, morreu esta segunda-feira à noite, aos 91 anos.

O arcebispo emérito de Braga, D. Eurico Dias Nogueira, morreu ontem à noite, aos 91 anos, confirmou à Renascença a arquidiocese.

O corpo estará a partir das 10h00, na Sé de Braga, onde vai haver recitação de laudes. Às 17h00, haverá uma missa. As celebrações que antecedem o funeral realiza-se amanhã, às 15h30, também, na Sé de Braga.

Com a morte de D. Eurico Dias Nogueira, Portugal perde a sua última ligação directa ao Concílio Vaticano II, bem como uma voz irreverente que nunca deixou de se fazer ouvir, quer dentro quer fora da Igreja.

Dificilmente um jovem nascido em Dornelas do Zêzere sonharia chegar onde chegou D. Eurico. Na juventude, como o próprio recordava, levava um dia inteiro de viagem para chegar da sua aldeia ao seminário em Coimbra, capital de distrito, o que implicava uma caminhada de 30 quilómetros a pé.

Mas Eurico Dias Nogueira não só foi ordenado padre como se tornou bispo e, já nomeado, mas ainda antes de ser ordenado, foi convidado a participar nas últimas sessões do Concílio Vaticano II. O bispo não nega que foi com algum embaraço que se viu envolvido em tão monumental evento. “Votei de acordo com a minha consciência e um bocadinho envergonhado por estar a votar numa coisa tão séria e sem ter feito o percurso. Mas fiz o que tinha a fazer e na quase totalidade votei 'sim'”, recorda, em entrevista à Renascença, em 2012.

Na altura, o arcebispo emérito voltou também a dizer que, na sua perspectiva, o Concílio não tinha ido tão longe como muitos esperavam e que faz mesmo falta um novo, para dar um “empurrão” à Igreja.

A nomeação que lhe permitiu participar no Concílio foi para a diocese de Vila Cabral, em Moçambique, na altura ainda possessão portuguesa. Foi precisamente em Moçambique que teve as suas mais importantes desavenças com a PIDE, que já o tinha "debaixo de olho" por ter dito publicamente que era contra a censura.

Em Vila Cabral, as autoridades do regime haviam de ter muito trabalho à conta de um bispo que assumiu: “Não vim para o Niassa para passar o tempo a tomar café com os ‘grandes’ da terra e chá com as respectivas esposas, como talvez eles desejassem”. Mostrou-se esperançoso: “Talvez um dia a minha voz se faça ouvir e cause escândalo nos homens da política bem instalados na vida ou facilmente acomodáveis”.

Estas palavras, tal como outras, mereceram o seguinte reparo da PIDE, reportado para a sua sede, em Lisboa: “Tem patenteado atitudes de hostilidade, censura e pouco reconhecimento para com o Governo”.

Pelos defensores mais acérrimos do regime ficou logo rotulado de comunista, mas admitír esta possibildiade seria ignorar outras condenações, em termos não menos claros, à ideologia soviética. Sobre Saramago, por exemplo, disse, em 1992, que era “um ateu confesso e comunista impenitente”, responsável por uma obra, “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”, que considerava “uma delirante vida de Cristo", concebida “na perspectiva da [sua] ideologia político-religiosa e distorcida por aqueles parâmetros (...) Um livro blasfemo, espezinhador da verdade histórica e difamador dos maiores personagens do Novo Testamento”.

No seu percurso episcopal, D. Eurico Dias Nogueira não se ficaria por Moçambique. O homem que se orgulhava de ter sido bispo em dois continentes, três países e quatro dioceses seguiria para Angola, onde esteve na diocese de Sá da Bandeira, acumulando, durante dois anos, a administração apostólica da então recém-criada diocese de Pereira d’Eça. Mas o regresso à metrópole acabaria por se concretizar, anos mais tarde, em 1977.

De "persona non grata" do regime, D. Eurico tornava-se “primaz das Espanhas”, assumindo uma das dioceses mais antigas e veneráveis da Península Ibérica: Braga.

Foi aí que permaneceu o resto dos seus dias enquanto bispo e, mesmo após a resignação por motivos de idade, ficou na cidade onde continuou a ser uma figura muito estimada.