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Vaticano II: “O abanão que furou o tempo”

24 mar, 2013 • Matilde Torres Pereira [com Aura Miguel e Maria João Cunha]

O Concílio Vaticano II por quem o viveu directamente. Quatro testemunhos que dão a conhecer um pouco mais a figura de João XXIII, o “pai” do Concílio.

Vaticano II: “O abanão que furou o tempo”

Um seminarista vindo da Holanda que se naturalizou português para vir “pregar para a província”. Um estudante de teologia que voou do Funchal para Roma sem imaginar que iria viver um Conclave. Uma voluntária lisboeta que assistiu emocionada aos primeiros anos de uma liderança que quis “furar o tempo” numa Igreja “cheia de nevoeiros”. Um recém-ordenado bispo para as colónias que foi surpreendido entre Coimbra e Vila Cabral, Moçambique, com uma convocação irrecusável para a qual teve de pedir vestes emprestadas.

Os quatro, em comum, têm o facto de terem acompanhado o acontecimento mais marcante na história da Igreja dos últimos séculos: o Concílio Vaticano II. João XXIII, o Papa responsável pela sua convocação, é este domingo confirmado santo, em conjunto com João Paulo II.

“IA ROMPER ALGO NA IGREJA"
A PROCLAMAÇÃO DO CONCÍLIO
O BISPO DAS COLÓNIAS
O “ABANÃO” 
OS ANOS PÓS-VATICANO II
FRANCISCO, "HERDEIRO" DE JOÃO XXIII

“IA ROMPER ALGO NA IGREJA”
 


 

O padre Dâmaso Lambers, na altura conhecido por Hermano, o seu nome de baptismo holandês, tinha 15 anos quando acabou a Segunda Guerra Mundial. Aos olhos de um adolescente do norte da Europa, o mundo estava a mudar, e a Igreja não parecia estar a acompanhar. “Nós terminámos a guerra em ‘45 e a Igreja estava um pouco cansada do Pio XII. Era tipicamente um Papa do passado, um homem austero, longe das pessoas”, recorda. Numa altura em que “não havia praticamente televisão”, os discursos do Papa eram seguidos através da rádio, e esses “nem sempre tinham a simpatia do povo”.

A mudança “ansiada” veio em 1958. No ano anterior, o jovem padre Maurílio Gouveia, ordenado há pouco mais de dois anos, partiu do Funchal, aos 25, para estudar Teologia em Roma. Não podia adivinhar que, poucos meses depois iria ter a oportunidade de assistir ao Conclave que elegeria Angelo Roncalli.

O agora Arcebispo emérito de Évora, D. Maurílio Gouveia, recorda uma outra dimensão de Pio XII, mais carinhosa. “Foi o Papa da minha juventude. Foi um Papa extraordinário, todos sentíamos isso em Roma. De tal maneira que, quando ele morreu, toda a gente dizia, um pouco como foi com João Paulo II, como é que vai ser, quem é que vem?”.

Quando o fumo branco começou a sair da chaminé da Capela Sistina, o bispo madeirense estava lá. Começaram as interrogações, até que o Papa apareceu na ‘loggia’. “Quando dizem ‘Habemus Papam (...) Cardinalem Roncalli’”, a multidão ficou perplexa, lembra o bispo. "Roncalli?! Um silêncio na Praça. Porque ninguém falava dele.”

Então, recorda D. Maurílio Gouveia, chegou à varanda do Palácio Apostólico “uma figura gordinha, baixinha, com as mãos assim um pouco levantadas e tal”. “Não fez grande discurso. E quando foi dar a bênção - e eu recordo-me disto, é um testemunho pessoal - ajoelhei-me e disse, ‘Vou fazer uma profissão de fé. Este é o Papa sucessor de Pedro’. E comecei a amar aquele Papa.”

Em Outubro de 1958, em Lisboa, Maria Cândida Arruela, na altura com 36 anos, trabalhava empenhada como auxiliar do apostolado. Acompanhou o Conclave pela rádio. “O Habemus Papam foi um momento de grande alegria, porque havia o choque com Pio XII. Quando apareceu João XXIII, parecia, sendo uma pessoa já de idade, [76 anos] que seria um Papa de transição”. Hoje, aos 92, recorda: “De repente, aparece-nos um Papa cheio de vigor, que fura o tempo, e que proclama um ano depois o Vaticano II”.
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A PROCLAMAÇÃO DO CONCÍLIO
 

 
No Outono de 1962, quando arrancou o Concílio Vaticano II, pairavam pela Igreja “ares de novidade”. D. Maurílio Gouveia lembra que já há algum tempo “se sentia a necessidade de uma reforma”.

“Lembro-me do anúncio como se fosse hoje. Foi a um domingo, dia 25 de Janeiro. Eu ouvi pela rádio. O Papa diz, com aquela simplicidade dele: "Bom, eu gostaria de fazer três coisas, primeiro, um sínodo romano, depois a revisão do código, e depois ainda convocar um Concílio ecuménico”, recorda.

Os alunos da Gregoriana estavam precisamente a estudar os grandes Concílios da história, como o de Niceia e o de Trento. O entusiasmo em verem-se de repente parte das próprias matérias que estudavam fez-se notar. “Foi o máximo. No colégio, delirámos. Pensámos, ‘Vamos assistir a um Concílio Ecuménico’! Foi como se ouvisse da voz do Papa, ‘Vamos celebrar um Concílio!’", ri o bispo.

Em Lisboa, o padre Dâmaso Lambers espantava-se com os gestos simples de João XXIII. “Poucos dias depois de ser Papa, ele estava no gabinete com vários cardeais, que perguntaram, ‘Mas como é que vai mudar a Igreja?’, e o Papa disse, ‘Isto é muito simples’. Abriu a janela, e disse: ‘Ar puro’”, lembra, a rir, o capelão de 83 anos.

“Vou contar uma coisa que poucas vezes se lembram”, continua. “Quando ele anunciou o Concílio e nomeou um grupo de entendidos para fazer um primeiro programa daquilo que devia ser a Igreja. O esquema seria primeiro o Papa, depois os cardeais, os bispos, os padres, os religiosos, e no fim o Zé Povinho.” “Quando este esquema chegou a João XXIII, ele cortou tudo e começou um novo esquema chamado 'O Povo de Deus'. E isto é o principal”, sublinha o padre Dâmaso Lambers. 
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O BISPO DAS COLÓNIAS  



Em 1964, dois anos depois do anúncio, ainda a procissão ia no adro. O Papa João XXIII morreu uns escassos oito meses após o arranque dos trabalhos e foi sucedido pelo Cardeal Giovanni Montini, que escolheu o nome Paulo VI.

O recém-ordenado bispo de Vila Cabral, Moçambique, nem teve tempo de fazer as malas para África quando recebeu a carta de Roma. D. Eurico Dias Nogueira, na altura com 41 anos, estava em Coimbra quando foi supreendido pela convocatória para o Concílio.

“Recebi logo uma carta de Roma a dar-me um passaporte a confirmar-me como bispo conciliar. Ou seja, com direito a tomar parte nas sessões e a votar como os outros.

Chegou a Roma e ao início “as coisas correram um bocadinho às avessas. Alguns bispos ficaram desnorteados, com medo que houvesse um cisma dentro da Igreja. Isso não seria possível”, garante o arcebispo emérito. “A Igreja Católica pode ter divergências, mas não chegam a esse ponto.” Perante os mais de 2.500 padres conciliares “senti ao vivo a universalidade da Igreja, que não era uma instituição localizada na Cúria Romana, mas que estava dispersa por todo o mundo.”

Os chamados “temas fracturantes” continuam a sê-lo mais de 50 anos depois. “O casamento dos padres, o sacerdócio das mulheres”, recorda D. Eurico Dias Nogueira. “Mas nisso o Papa não deu grande apoio, entendeu que eram assuntos delicados que traziam uma divergência muito grande, que prejudicaria os trabalhos.”
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O “ABANÃO” 
 



Lentamente, as sementes lançadas por João XXIII começaram a brotar, tal como algumas confusões que se seguiram depois, já na fase de aplicação. “As confusões foram algumas das maiores”, ri Maria Cândida Arruela.

A passagem da liturgia para a linguagem corrente marcou um definitivo e indiscutível momento de viragem na História da Igreja. Passou-se, de um dia para o outro, do latim para o vernáculo. Os padres passaram a celebrar missa de frente para os fiéis, e não de costas, como era tradição. Foi revolucionário, mas os portugueses aceitaram as mudanças com naturalidade.

”Na minha diocese, as pessoas aceitaram normalmente. Acho que em Portugal esta adaptação fez-se sem grandes dificuldades”, considera D. Maurílio Gouveia.

Já a ideia de haver mulheres a leccionar Teologia demorou algum tempo, admite D. Eurico Dias Nogueira. “Hoje temos senhoras professoras de Teologia nas universidades - uma coisa impensável há 40 ou 50 anos.”

O acesso à liturgia permitiu novidades também no papel do cristão comum. Depois do grande encontro dos bispos, deu-se o despertar dos leigos. Para Maria Cândida Arruela o Concílio ajudou a entender que cada cristão é “pedra da construção da Igreja viva.”
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OS ANOS PÓS-VATICANO II  


Para alguns, os tempos depois do Concílio foram de gestão de expectativas. Esperava-se uma revolução, mas as mudanças aconteceram ao ritmo próprio de uma instituição com mais de dois mil anos.

Para o padre Dâmaso, João Paulo II foi um grande missionário, mas não propriamente um renovador da Igreja. “O Papa João Paulo II deu toda a importância ao povo. Não continuou a missão de João XXIII dentro do episcopado, mas, devemos reconhecer; foi fantástico. Nunca um Papa tinha visitado tantos hospitais, tantas casas de idosos, tantos bairros de barracas, tantas cadeias. João Paulo II abriu a Igreja a toda a gente.”

“O Papa polaco  foi um expoente muito grande do anúncio da vida cristã”, acrescenta Maria Cândida Arruela, “mas este Papa Francisco, com mais vivacidade, ainda mais perto das pessoas, vai unir-se ao João XXIII”, conjectura. 
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FRANCISCO, "HERDEIRO" DE JOÃO XXIII
 
 


Os temas do Concílio continuam actuais e o legado cai agora nas mãos do Papa Francisco. “Este documento que ele publicou sobre a pastoral (a exortação apostólica “Evangelii Gaudium” – “A Alegria do Evangelho”) coloca nitidamente o homem no centro. “Ele é totalmente um continuador de João XXIII”, garante o padre Dâmaso Lambers.

Para o capelão, ainda falta muito trabalho para a concretização do projecto de João XXIII. “Continuo a ter o sonho de que haja algum dia uma revisão a toda esta complicação oficial da Igreja. Não era preciso toda esta pompa e estes palácios. Isso, em primeiro lugar, custa imenso, e os pobres precisam tanto do dinheiro da Igreja.”

“O único problema que eu tenho”, acrescenta, “é que há muitos bispos que gostam deste Papa, mas queira Deus que tenham a força de vontade e a humildade para seguir a sua vida. É muito fácil dizer 'eu gosto dele', mas depois continuarem a viver como sempre viveram.”

Já na soleira dos 90 anos, D. Eurico Dias Nogueira considera os dias que passou entre os mais de dois mil prelados de todo o mundo a debater e a votar as grandes questões da vida da Igreja. Sobre a actualidade do Vaticano II deixa uma reflexão:  “Já lá vão 50 anos e ainda não está tudo aplicado. As portas ficaram abertas. Agora resta saber se as pessoas sabem passar por elas.”
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