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É a sociedade que nos faz homem ou mulher?

15 nov, 2013

Professor de Direito Diogo Gonçalves ajuda a esclarecer o que é a "ideologia do género", que tanto preocupa os bispos portugueses.

Ao longo dos anos, tem ganho terreno a teoria que afirma que a masculinidade e a feminilidade são construções puramente culturais e, segundo os bispos portugueses, é isso que está por detrás de alterações legislativas como o casamento entre pessoas do mesmo sexo e as propostas de adopção por casais homossexuais, como se pode ler numa nota pastoral divulgada quinta-feira. Chama-se a esta teoria "ideologia do género" e, na opinião do especialista Diogo Gonçalves, esta é uma questão que põe em causa a civilização ocidental. Além de ser jurista e professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Diogo Gonçalves fez parte da Comissão de Reflexão sobre a Ideologia do Género, é consultor da Conferência Episcopal Portuguesa e é ainda membro da direcção da Cenofa, uma associação que trabalha no âmbito da família, conjugalidade e educação.


Esta nota pastoral surge em momento oportuno?
Parece-me bastante oportuno. Vivemos num momento de mudança civilizacional clara em que, misturado com muitos outros elementos de análise, há uma nova proposta antropológica que se chama 'ideologia do género', que é contrária a toda a tradição e toda a riqueza do humanismo judaico-cristão e da tradição ocidental.

O que está em causa com esta ideologia?
Começo por dizer o que não está em causa. O que não está seguramente em causa é o reconhecimento da igualdade entre homem e mulher e todas as lutas e conquistas associadas a este tópico são boas, benéficas, saudáveis e de saudar. Mas a ideologia do género não tem que ver com isso. É uma proposta antropológica que propõe considerar a masculinidade e feminilidade como aspectos puramente culturais, determinados por um processo educacional e social que nada tem que ver com a realidade biológica e por isso promove um entendimento do homem, daquilo que é humano, a partir de uma ideia pré-concebida de perfeita autonomia face à realidade biológica, em que diferenças entre homem e mulher não são riqueza e um convite à comunhão, mas sim um mal que é preciso combater e anular.

A carta dos bispos alerta para a forma como isto é tratado nos programas escolares, sobretudo ao nível da alteração de linguagem.
Estamos perante uma verdadeira ideologia que tem um programa de intervenção social que quer alterar a realidade. O problema de qualquer ideologia é que se a realidade não está de acordo com a ideia, há que mudar a realidade. Para isso há vários campos de batalha - o primeiro é o campo da linguagem. Alterações de linguagem que permitam alterar o conteúdo de uma ideia e comunicar em termos ideológicos é fundamental. Por exemplo, substituir paternidade e maternidade por parentalidade é fundamental. Parentalidade é neutro, não tem nada que ver com biologia nem com o acto de gerar. A partir daqui podemos utilizar o conceito e aplicá-lo a formas alternativas de paternidade que não estejam associadas à biologia. Falar de famílias em vez de família, falar de poliformia sexual, para dar a entender que não há uma sexualidade humana, o que há são escolhas de comportamento determinados por um processo cultural. Outro modo de difusão é a educação. Sobretudo através da dita educação sexual, que é fundamentalmente uma educação para a dita igualdade de género. O que se está a dizer é dizer às crianças e aos jovens que não são nem masculinos nem femininos - são o que quiserem ser e que a masculinidade e feminilidade não é algo que não nasce com eles e que lhes é dado, mas é algo que lhes é imposto num processo cultural. 

Um dos alertas é que esta revolução antropológica está a alterar a nossa compreensão do conceito de família e casamento.
Verdadeira revolução antropológica - o conceito até foi usado pelo Papa Bento XVI há pouco tempo. Neste contexto, o casamento, a união perpétua e estável entre homem e mulher deixa de ser visto como expressão do que é a humanidade e a vocação ao amor, marcada pela diferenciação sexual, e passa a ser um mero instituto cultural, uma invenção judaico-cristã e uma invenção criada por uma cultura machista para oprimir a mulher. Isso torna difícil ou menos evidente compreender que quando falamos do casamento estamos a falar de uma vocação natural, uma expressão de amor que está de acordo com aquilo que é a verdade do homem e da mulher e não como uma pura construção cultural.

Para o Patriarca de Lisboa, e a própria carta pastoral afirma isso, essas alterações à lei não são irreversíveis. Acha possível que sejam revogadas?
Em democracia nada é irrevogável e em democracia, supostamente, a vontade legislativa terá de expressar aquilo que são os sentimentos culturais, religiosos e civilizacionais de um povo. Penso que ninguém duvidará de que o casamento entre pessoas do mesmo sexo, além de servir uma minoria muito minoritária - basta ver as estatísticas de uniões entre pessoas do mesmo sexo, que se encontram num processo descendente ainda maior que os casamentos -, não reflecte, nem de perto nem de longe, aquilo que é a opinião da esmagadora maioria dos portugueses sobre o direito, a justiça, a civilização e a família.

E a Igreja deve exercer a sua influência junto dos partidos mais à direita para conseguir este objectivo?
Deve perguntar aos bispos - eles é que têm de saber se e quando querem falar com o poder político. Mas o mais importante é esclarecer a consciência dos católicos para que livremente, no exercício da sua cidadania responsável e plural, intervenham como acham melhor intervir. A questão da ideologia do género não é uma questão religiosa - é uma questão de civilização. Obviamente, a Igreja acolhe tudo o que é a verdade do homem, mas é a verdade acerca do que é ser homem e mulher, do que é ser humano e do que é o amor e a família que está aqui em causa e não uma questão religiosa.

Os homossexuais, o aborto... O Papa Francisco tem dito que a Igreja não pode viver obcecada com estes assuntos. Não se corre aqui esse risco de, pelo menos, parecer que há uma obsessão?
Proclamar a verdade e dizer o que é a realidade não é uma obsessão - é um serviço que a Igreja presta ao povo de Deus, à cultura e à civilização. Não é uma obsessão por questões morais - é o compreender e detectar uma mudança de paradigma civilizacional, que nos está a levar para um construtivismo sociológico que não sabemos onde nos vai levar e que é profundamente comprometedor da felicidade do homem e de todos nós.

Um dos jornais diários escreve que a Igreja, ao divulgar esta carta pastoral, está a condicionar a resposta dos católicos ao inquérito que o Papa Francisco pediu para preparar o sínodo sobre a família, que vai decorrer no próximo ano. Pode ser esse o objectivo?
Penso que não faz sentido, pelo contrário. Ao vir a público esta nota pastoral, a Conferência Episcopal dá uma chave de leitura que ajudará os católicos a pronunciar-se sobre esses aspectos com maior propriedade e sobretudo com uma chave que permite ler melhor a realidade.