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Um concílio com entrada especial para portugueses

06 nov, 2013 • Filipe d’Avillez

Braga vai discutir por estes dias um momento marcante da Igreja. Foi há 459 anos, mas há acontecimentos intemporais.

Um concílio com entrada especial para portugueses
A presença da delegação portuguesa no concílio de Trento, há mais de quatro séculos, foi uma dor de cabeça para os responsáveis pela logística, que tiveram de fazer uma nova porta de entrada para o salão. Aliás, segundo o arcebispo de Braga de então, Dom Frei Bartolomeu dos Mártires, o problema não era dele, mas do arcebispo de Toledo.

Expliquemos. Ainda hoje estas dioceses reclamam para si o título de primaz das Espanhas, uma grande dignidade que acarretava o direito a uma entrada triunfal no sínodo. Os padres conciliares não decidiram a favor de um ou de outro, mas criando a segunda porta possibilitaram que ambos entrassem em simultâneo, salvaguardando assim o bom ambiente.

"Nunca tivemos em nenhum concílio uma representação tão substancial, tão digna como nesse", explica o cónego José Paulo Abreu, presidente do Instituto de História e Arte Cristãs da Arquidiocese de Braga. Dom Frei Bartolomeu dos Mártires é sem dúvida a figura de maior destaque nessa delegação portuguesa, razão mais que suficiente para que, em Braga, se discuta por estes dias o impacto de Trento, num congresso internacional que reúne cerca de uma centena de especialistas e que termina esta sexta-feira.

Para os bispos católicos da altura, uma das preocupações centrais era a reforma da Igreja, muito desejada. O contexto era de divisão, por causa dos movimentos protestantes. "O concílio reuniu-se em 1545, mas há várias dezenas de anos que havia este desejo de reforma", explica D. Nuno Brás, bispo auxiliar de Lisboa.

"É óbvio que a reforma protestante, todo o drama de Lutero, toda essa questão, veio de certo modo apressar e mostrar a inevitabilidade do concílio, mas este abordou, praticamente, todos os âmbitos da Igreja, seja de disciplina seja doutrinais - fez uma revisão completa disciplinar e doutrinal do que é a Igreja Católica. Muitas das realidades que hoje vivemos foram fixadas claramente nessa altura", recorda D. Nuno Brás, dando como exemplo a criação dos seminários para formação de candidatos ao sacerdócio.

Mas se da parte das forças políticas, a quem incomodava a divisão interna criada pelo surgimento de diferentes confissões cristãs, interessava que o concílio procurasse fazer as pazes com os pais da reforma protestante, o que aconteceu foi o contrário. Apesar de promessas de salvo-conduto aos principais reformadores, estes não compareceram em Trento porque não lhes seria dado o direito de votar. O concílio tornou-se, assim, um episódio de contra-reforma - a reacção católica às novidades trazidas pelos protestantes.

Pode-se dizer então que o concílio agravou as divisões entre católicos e protestantes? "Na medida em que coloca a doutrina clara e mostra a realidade daquilo em que a Igreja acredita em termos doutrinais, podemos dizer que sim, sem margem para dúvidas", considera D. Nuno Brás.

A mesma opinião tem o pastor baptista Tiago Cavaco. "É difícil que um protestante não ache que num certo sentido tenha agravado, até porque um protestante dirá que a reforma não foi feita contra a Igreja, mas feita a favor."

Mas, clarifica D. Nuno Brás, a intenção dos padres do concílio não foi essa. "O concílio não teve nunca o propósito de alargar o fosso. O pensamento dos padres de Trento foi dizer qual é a fé da Igreja Católica, no sentido de permanecer na verdade daquilo que é a fé apostólica. Não foi nunca a intenção de dizer 'se os irmãos reformados pensam assim, nós temos de pensar ao contrário'. Aliás, há muitas coisas em que o concílio e Lutero estão muito próximos." 

Leituras marginais
Independentemente das intenções dos presentes, a forma como o concílio foi recebido no mundo católico só se compreende à luz do ambiente de contra-reforma. Com os protestantes a enfatizar a autoridade máxima da Escritura por oposição à tradição apostólica, a leitura da Bíblia passou a ser desaconselhada para todos os que eram fiéis a Roma.

"É óbvio que a relação que os católicos têm com a Escritura é diferente do que era há 450 anos. Hoje, graças a Deus, existe um empenho na Igreja de Roma para a leitura da Escritura. De maneira nenhuma podemos equiparar Trento com o que é hoje uma busca pela leitura da Bíblia no contexto da Igreja Católica", considera Tiago Cavaco.

Mas D. Nuno Brás explica que nesse sentido não foi a posição da Igreja que mudou, mas sim a prática pastoral. "Algumas leituras de Trento, de facto, marginalizaram a Sagrada Escritura, nunca na reflexão teológica, mas na piedade católica corrente. O Concílio Vaticano II retoma e reafirma a importância da Escritura precisamente na sequência de Trento. Portanto, a questão não foi tanto Trento - foi a leitura que depois na prática se fez, seja de Trento, seja da própria dialéctica entre católicos e protestantes." 

Passados muitos séculos, as relações entre católicos e protestantes mudaram radicalmente, sendo actualmente fraternas na maioria das situações. No caso de uma das comunhões luteranas houve mesmo uma declaração conjunta que põe fim às divisões sobre a questão da justificação, um dos principais obstáculos.

Mas o maior acesso à Bíblia por parte dos católicos não sanou todos os problemas. "Passados 450 anos, a Igreja Católica continua para todos os efeitos a Igreja de Trento, lendo a Bíblia de uma maneira diferente da que os protestantes lêem", considera Tiago Cavaco.

Do ponto de vista católico, essa diferença explica-se da seguinte maneira: "Se os reformados dizem que a revelação está toda contida na Sagrada Escritura, Trento diz que a revelação está toda contida em Jesus Cristo, naquilo a que Trento chama 'O Evangelho', na linha da carta de São Paulo aos romanos", e que inclui, além das Escrituras, a tradição apostólica.