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Opinião

A campanha "refugiada" no cabo

04 set, 2015 • José Alberto Lemos

Todas as sextas-feiras, até às eleições legislativas, o jornalista José Alberto Lemos analisa, na Renascença, o discurso político, a televisão e o papel dos media na campanha.

A campanha "refugiada" no cabo

Já se sabia que estas eleições seriam as primeiras em que assuntos externos desempenhariam algum papel no discurso dos partidos e no juízo dos portugueses. Desde que, em Janeiro, o Syriza venceu na Grécia, o assunto invadiu a agenda política. Em bom rigor, a Grécia nem deve considerar-se assunto externo, já que as questões europeias são hoje tão "nacionais" quanto as domésticas que por cá se discutem.

O que não se calculava é que um outro assunto externo interferisse de forma tão clara com a campanha eleitoral e a subalternizasse em absoluto. A tragédia dos refugiados sírios (e não só), que tem posto à prova os princípios fundadores da Europa enquanto projecto político e enquanto berço dos valores humanistas, ocupou, sobretudo nas últimas semanas, um lugar central na atenção dos media e nas emoções dos portugueses.

E ainda bem que o fez, porque mostrar indiferença, ou apenas distanciamento, em relação a esta tragédia humanitária que se desenrola perante os nossos olhos e dentro das nossas portas seria não só moralmente indesculpável mas também uma manifestação de canhestro provincianismo. Ou pior, xenofobia.

Significa isto que a campanha eleitoral vai ser dominada pelo tema dos refugiados? Não seguramente. Significa apenas que não há campanha eleitoral, por muitas emoções que desperte – e não será certamente o caso –, que consiga sobrepor-se às imagens pungentes de crianças afogadas no Mediterrâneo ou de gente desesperada a furar barreiras de arame farpado ou a atropelar-se para entrar em comboios cujo destino ignora.

Aqui, a lógica da proximidade não funciona e ainda bem. Não há comício, arruada, manifestação, visita a feira, conferência de imprensa, que mereça mais atenção do que o drama dos refugiados. Afinal, o que são umas eleições perante a crise profunda de valores por que passa a Europa e que esta tragédia veio pôr a nu? Mais, o que é afinal a própria crise do euro perante este drama humano a que assistimos hoje? Há certamente milhares de gregos e de portugueses a viver em condições indignas, mas quantos dos que se aventuram no Mediterrâneo ou nos Balcãs desejariam hoje estar nessas condições?

Relativizemos, pois. Mas relativizar não significa menosprezar ou reduzir à expressão mais simples, tipo serviços mínimos obrigatórios, uma (pré) campanha eleitoral que esta semana deu os primeiros passos. E foi isso que vimos acontecer nas televisões nacionais. Porque se se compreende que a campanha ocupe ainda um lugar modesto no alinhamento dos telejornais em sinal aberto, já não é aceitável que seja quase ignorada.

São as televisões que despertam os portugueses para o fenómeno eleitoral, é delas que depende em grande parte o esclarecimento dos eleitores. E por isso esta campanha arranca com um pecado original: todos os debates entre líderes partidários – à excepção do que opõe Passos Coelho a António Costa – serão transmitidos no cabo.

O resultado está à vista: o debate entre Jerónimo de Sousa e Catarina Martins, na terça-feira, dia 1, foi visto por 115 mil pessoas, um número aceitável para um canal como a RTP-Informação, mas quase irrelevante por comparação com o mesmo debate que opôs os líderes do PCP e do BE nas eleições de 2011, que foi visto por mais de 800 mil espectadores em canal aberto. Uma "pequena" diferença de 700 mil pessoas! À hora a que transmitiu o debate na RTP-Informação, a própria RTP1 teve uma audiência de 650 mil espectadores, o que seria a audiência potencial do debate – uma diferença superior a 500 mil pessoas!

Eis a consequência nefasta de colocar os debates nos canais de cabo, o que no caso da RTP é ainda mais grave, dado tratar-se do serviço público. Se numa questão decisiva como o esclarecimento dos eleitores e a promoção do debate político a RTP não faz a diferença em relação às televisões privadas, é legítimo interrogarmo-nos em que fará então…

No caso da SIC e da TVI, não surpreende que tenham relegado os debates que lhes couberam para os respectivos canais de cabo, porque é neles – e só neles – que tratam os temas políticos. Nas televisões comerciais valores mais altos se alevantam… Mas já surpreende, e muito, que nos telejornais das 20h00 de quarta-feira, dia seguinte ao debate, não tenham sequer passado uma reportagem sobre o debate PCP-BE.

Atendendo a que, em conjunto, os telejornais das 20h00 da SIC e da TVI ultrapassam os dois milhões de espectadores e que muitos milhares de portugueses têm como veículo único de informação esses telejornais, é legítimo pensar que haverá certamente muita gente que nem sequer saberá que esta semana houve um debate eleitoral.

Gente essa que ficou a saber tudo sobre uma cantora que emagreceu ou sobre a rainha de Inglaterra que baterá um recorde de longevidade no cargo – na próxima semana!!!!! – mas que esta semana ficou sem saber nada do debate entre Jerónimo de Sousa e Catarina Martins. Isto em telejornais que duraram 75 minutos deixa no ar a suspeita de que a omissão se deveu ao facto de o debate ter decorrido num canal da concorrência. Será isso? Veremos como serão tratados os debates dos seus próprios canais de cabo.

Obcecados com a televisão e os novos media, os dirigentes políticos tentam "aggiornar" as suas capacidades comunicacionais. António Costa respondeu esta semana em "live streaming" a perguntas dos internautas, e esteve num "town hall meeting" muito à americana, interpelado directamente pela assistência. O CDS vai reunir os seus dirigentes em Ofir para lhes "ensinar a falar em público" e "como defender uma boa ideia em cinco minutos", sob a batuta de Nicolau Breyner.

Todos estes esforços, contudo, poderão ser em vão, já que saber comunicar não basta, é preciso ter a quem comunicar. E se a campanha continuar "refugiada" no cabo, é duvidoso que as mensagens cheguem aos destinatários.

Mas relativizemos, de novo. Na noite das eleições, lá estaremos todos a lamentar a alta taxa de abstenção…