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Bastonário dos economistas

Portugal está melhor, "os portugueses ainda não"

08 jul, 2015 • João Carlos Malta

"Havia muita coisa por resolver há muitos anos e agora resolveu-se" nesta legislatura, diz Rui Leão Martinho. Apesar da austeridade, a "coesão social" foi assegurada.

Portugal está melhor, "os portugueses ainda não"
No dia em que o primeiro-ministro vai ao Parlamento discutir com os deputados o Estado da Nação, a Renascença entrevista o bastonário da Ordem dos Economistas. Objectivo: saber se estamos melhor ou pior do que há quatro anos.

Tal como afirmou, há uns meses, o líder da bancada parlamentar do PSD, Luís Montenegro, também Rui Leão Martinho pensa que Portugal está inegavelmente melhor, sendo os mercados o melhor barómetro dessa melhoria, mas também assume que os portugueses ainda não o sentem. Ainda assim, deixa uma previsão: "Vão sentir".

Numa conversa em que se passam em revista temas como a austeridade, o mercado de trabalho, a recuperação do consumo ou a reacção dos portugueses a quatro anos de medidas que lhes retiraram poder de compra, o bastonário fala também das privatizações. Não as considera ideológicas. "Acho que havia muita coisa por resolver há muitos anos e agora resolveu-se".

Quatro anos depois do começo da legislatura e aplicadas várias medidas de austeridade, o país está melhor ou pior?
Em 2011, não tínhamos alternativa ao que se passou. Portugal foi pela terceira vez alvo de uma ajuda externa para poder sanear as finanças. Diria que a situação que temos hoje – e vemo-lo através da nossa situação nos mercados, taxas de juro e liquidez – é totalmente diferente da que era há quatro anos.

Estamos agora em fase de continuar algumas políticas que são de bom senso para não repetir as situações do passado. O principal foco deve estar agora no crescimento económico. Sofremos anos e anos de débil crescimento. Estamos num continente que está a crescer pouco relativamente a outros. Se as finanças não estão resolvidas, porque o nosso endividamento ainda é bastante significativo relativo à riqueza que criamos, o objectivo agora é crescer e obter investimento para poder proporcionar aos portugueses postos de trabalho e bem-estar.

Portanto, dá nota positiva à acção do Governo?
Dou-a aos portugueses, que, pela terceira vez, se vêem condicionados com programas de credores externos. Os portugueses compreendem e cumpriram com muito sacrifício a diminuição do nível de vida, o aumento da carga fiscal, mas agora é preciso obter o retorno desse sacrifício.

Concorda com Luís Montenegro? O país está melhor, mas os portugueses nem por isso?
Os portugueses não estão melhor, mas vão sentir melhorias. As melhorias ainda são poucas para aquilo que se possa dizer que é uma situação radicalmente diversa da que se viveu há dois ou três anos, mas a questão da confiança já se restabeleceu. Vemos isso com a procura interna que aumentou desde Janeiro deste ano.

Essa retoma do consumo não se deu por um aumento do rendimento disponível, que só foi possível devido ao alívio de algumas medidas de austeridade?
Sim, o reganhar da confiança desde Janeiro foi devido às cargas exageradas sobre salários e os rendimentos dos portugueses terem sido aliviadas. Mas, ainda assim, não o suficiente. Os portugueses querem voltar à situação fiscal anterior e depois progredir para sentirem que vivem melhor e têm acesso a determinado tipo de consumo e de estilo de vida. Ainda não sentem.

Essa retoma baseada no aumento do consumo de bens importados não é voltar ao modelo anterior? E não vai contra a política que este Governo defendeu?
Este consumo que se dirige a bens importados deve ser monitorizado para que não façamos com que, outra vez, a balança comercial se desenvolva de forma desfavorável.

Mas não é preocupante que se tenham vendido mais carros nos primeiros seis meses deste ano do que nos anos inteiros de 2012 e de 2013? Não há uma inversão de lógica?
Há uma inversão de lógica, mas também a base nos últimos anos era muito baixa. Não só nesse tipo de bens, mas também por exemplo no investimento. Essa base dá-nos crescimento muito exagerados, mas talvez no cômputo geral do ano venhamos a ver que esses valores sejam relativamente moderados e dentro de limites aceitáveis. No investimento passa-se o mesmo.

Neste momento, temos variáveis que se começam a mover: as exportações, o consumo e o investimento. A mais essencial, para mim, é a do investimento directo e produtivo que a economia portuguesa tem de recolher e manter.

O aumento de que fala no investimento não se justifica na maior parte pelos processos de privatizações? Ele é sustentável para o futuro?
Tem razão, há nos últimos anos [nestes valores], e não é só de agora, uma importância grande de empresas que eram da esfera pública e passam para o privado. Há também empresas privadas que mudaram de propriedade. Eram de capital maioritariamente português e passaram a ser de capital estrangeiro. Mas o mundo é global e é natural que aceitemos porque é comum a todos os países.

Depois, há as empresas privadas e que têm aumentado a sua capacidade de investimento. Isso sucede com algumas unidades estrangeiras, nomeadamente alemãs. Mas também algumas portuguesas.

O aumento do investimento é para manter ou isto é apenas um epifenómeno motivado pelas privatizações?
Espero que não seja um epifenómeno. Se for, temos um problema grave. É natural que os valores que temos agora sejam esse tal epifenómeno, mas temos muitas empresas e não são só as do Estado. Todo o trabalho de atrair investidores, e sei do que falo por questões profissionais, é lento. Demora muitos meses.

No memorando de entendimento estava inscrito que as privatizações deviam alcançar um valor de 5,5 mil milhões de euros. Mas o Governo dobrou esse valor. Muitos dos críticos dizem que, mais do que a necessidade, o que motivou a acção do governo foi um preconceito ideológico.
Em primeiro lugar, havia um objectivo financeiro de obtenção de receitas e esse é o valor que se precisava para reequilibrar as finanças públicas. As privatizações devem ser olhadas sob a perspectiva de perceber se fazem sentido e se vão trazer maior eficiência e eficácia e desempenho às empresas. Tínhamos um peso muito grande de empresas públicas que perdem todos os anos dinheiro e que prejudicam o Orçamento de Estado e a contribuição que damos através do pagamento de impostos.

Mas nem todas as empresas estão nesse grupo. O Oceanário obtinha lucros anuais. A TAP, na sua actividade operacional, também tinha um saldo positivo...
Sim, mas o que é que fazia a operação do Brasil, que tem perdas medonhas todos os anos? Criámos ao longo dos anos situações muito difíceis de resolver. Qual é a expectativa que se tem? É que, com a venda das empresas, os privados as saibam manter, aumentar os postos de trabalho e que as empresas sejam competitivas no mercado global.

Quanto às concessões, do Oceanário ou das empresas de transportes, há várias motivações. Na questão das empresas de transporte, há a questão de desonerar o Estado e os contribuintes dessas empresas, dando a exploração a empresas privadas. No caso do Oceanário, não conhecendo as motivações, de certeza que há uma explicação lógica.

Temos de partir do pressuposto de que estas concessões vão ter um resultado positivo e que, se não tiverem, podem ser reversíveis.

Portanto, não pensa que o Governo tenha ido longe demais?
Acho que havia muita coisa por resolver há muitos anos e agora resolveu-se. Fez-se num período que nos pode parecer curto, mas o caminho fica muito mais facilitado para quem nos venha a governar a partir de Outubro.

A redução do défice (de 9,8,%, em 2011, para 4,5% em 2014) tem sido apontado pelo Governo como uma das maiores conquistas deste período. Todavia, há quem defenda que esta diminuição foi conseguida pelas vendas de empresas do Estado, que são irrepetíveis, e pelo "colossal" aumento de impostos, que foi apresentado como momentâneo. Há condições para no futuro manter o défice em valores reduzidos quando o enquadramento mudar?
É verdade que as primeiras medidas de correcção das contas públicas foram feitas com base em receitas, que nem era o que estava previsto no memorando. Mas os responsáveis devem ter pensado que era mais curto para obter resultados. É assim que se justifica a questão da enorme carga fiscal e das receitas das privatizações, que desde os anos de 1980 têm dado uma ajuda ao défice.

Penso que a nova fase, depois das eleições de Outubro, vai proporcionar a possibilidade a quem governar de ir diminuindo os impostos e voltar a reencontrar as taxas correctas tendo em conta os salários em Portugal e que deixe de haver as contribuições extraordinárias. E que passemos a ser um país a ter os défices abaixo ou até os 3%.

A carga fiscal tem de diminuir e não de aumentar, porque isso não incentiva nem o investimento, nem o recrutamento.

Os números do INE revelam que houve uma diminuição de 298 mil empregos em quatro anos, à qual podemos juntar os 200 mil portugueses que saíram do país. Mesmo com estes dados, podemos falar de sucesso?
O desemprego só diminui com mais investimento. O número de desempregados é muito elevado, mas o desemprego estrutural sempre existiu. Talvez não estivesse tanto à mostra, com pessoas com pouca formação e pouca possibilidade de integração.

Esse valor é de 10% em Portugal...
Exactamente. Mas há outra questão: o mercado de trabalho tem de se alterar em relação ao contrato de trabalho. Quando comecei a trabalhar havia apenas um contrato de trabalho com um período experimental.

Hoje em dia, já se concluiu que não é de um dia para o outro que se podem anular todo o tipo de contratos precários que existem, mas devemos, à medida que há mais empresas e mais investimento, aproximarmo-nos de um contrato de trabalho único, com um período experimental, mas que não tenha esta precariedade.

Neste período, foi-se longe demais na flexibilização do mercado de trabalho ou não?
Não, nesse sentido. Mas na precariedade, sim. Há muitos contratos precários. Isso pode ser uma solução temporária, mas ela permanece em Portugal desde os anos 1980. É altura de reformular isso e dar condições aos jovens, que até estão mais habilitados, de entrar no mercado de trabalho e de darem provas.

Mas essa precarização não é decorrente da flexibilização que estava no memorando?
Não, já existia há muitos anos. Tem sido uma permissão que se tem dado às empresas, mas também ao estado de contratar precariamente.

Por que é que o país, apesar de todas as medidas de austeridade, passou estes quatro anos com uma conflitualidade social baixa?
Os portugueses têm uma certa ideia de compromisso. Está no nosso ADN. Os portugueses, mesmo não concordando, percebem a gravidade da situação.

Já disse que Portugal tem de entrar num ciclo de crescimento. Foram feitas reformas estruturais para que isso aconteça?
O crescimento tem sido de 1% e aquilo que pretendíamos era de 2% ou 3%. Foram feitas reformas. O Governo do PS fez umas, este do PSD/CDS outras, mas foram esparsas. Temos de novo de pensar como queremos encarar a administração pública e que tipo de funções queremos que o Estado desempenhe, de que forma e com que meios.

Temos um problema demográfico grave, um problema com a Segurança Social, e temos de saber se a médio ou longo prazo temos as medidas necessárias para ter a sustentabilidade garantida. Temos de pensar num novo contrato social.

Mas mesmo com o empobrecimento da população, há que ressalvar que coesão social foi mantida. Agora, temos de ser cada vez mais inclusivos para determinado tipo de população que saiu do mercado de trabalho. Isso deve ser a ambição de uma sociedade desenvolvida.