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Entrevista

"Chegou a altura de criarmos um parlamento composto por cidadãos comuns: como tu e eu"

22 mai, 2015 • Pedro Rios

A democracia, tal como ela está, é o pior dos sistemas excepto todos os outros? Manuel Arriaga recusa-se a acreditar nessa espécie de dogma. Por isso, escreveu "Reinventar a democracia". Porque "os políticos profissionais rapidamente aprendem a deixar de nos representar".

"Chegou a altura de criarmos um parlamento composto por cidadãos comuns: como tu e eu"
Escreve que "as democracias não estão a funcionar", a "frustração" é "palpável e generalizada" e que é necessário "recuperar o controlo sobre o nosso futuro". Propõe cinco medidas concretas para demonstrar que os cidadãos podem reformar os sistemas políticos.

Manuel Arriaga, professor das universidades de Nova Iorque e Cambridge, escreveu "Reinventar a Democracia" (ed. Manuscrito), que chegou ao topo da lista dos livros mais vendidos pela Amazon britânica na secção "Democracia".

O livro apresenta várias propostas, entre elas a criação de grupos de cidadãos seleccionados de forma aleatória para decidirem colectivamente sobre um problema político.

"Quando falamos em alternativas democráticas, com frequência a imagem que nos vem à cabeça são pequenas comunidades vivendo num ponto isolado do país ou do mundo. Não tem que ser assim", diz à Renascença.

A proposta-chave do livro é criar um parlamento dos cidadãos. Em que seria diferente dos parlamentos democráticos que conhecemos hoje?
O que se tornou evidente é a necessidade de trazermos cidadãos comuns para o coração e o centro dos nossos sistemas políticos. Chegou a altura de criarmos um parlamento composto por cidadãos comuns: como tu e eu. O resultado [dos trabalhos desse parlamento] seria um conjunto de recomendações sobre como reformar as instituições democráticas que seria apresentado à população sob a forma de um referendo.

O parlamento dos cidadãos não acabaria por mimetizar os vícios do parlamento dos políticos?
Esse tipo de receio é infundado. Este parlamento dos cidadãos seria apontado por um único mandato não renovável. Teriam que desempenhar as suas funções sem qualquer expectativa de serem reeleitos. Muitas das patologias com que nos deparamos no caso dos políticos profissionais têm precisamente a ver com o facto de os políticos profissionais, em vez de nos estarem a representar, estarem meramente a tentar ser reeleitos.

Uma vez eleitos, os políticos profissionais começam a ser submetidos a um processo de formatação: começam a aprender a respeitar as hierarquias partidárias, a não incomodar demasiado os interesses instalados, a não levantar demasiadas ondas porque isso pode ser mau para as suas carreiras. Rapidamente aprendem a deixar de nos representar.

No livro dá alguns exemplos de decisões que envolvem cidadãos sorteados…
Este parlamento haveria de ser escolhido por sorteio. Eu sei que isto parece uma loucura a muitos daqueles que ouvem esta ideia pela primeira vez…

Mas acontece, por exemplo, em alguns estados norte-americanos, tanto na política como na justiça.
É um corte transversal da nossa sociedade. Estaremos perante um microcosmos da sociedade portuguesa que não estará sujeito às patologias da profissionalização política. Assim asseguramos que as decisões a tomar vão estar muito mais próximas daquilo que a população escolheria fazer se tivesse o tempo e os recursos necessários para tomar decisões informadas e baseadas na razão.

Não haveria o risco de a democracia se tornar a ditadura da maioria? Hoje, os partidos políticos asseguram, através da produção de leis, a protecção de etnias ou orientações sexuais minoritárias, por exemplo.
Compreendo perfeitamente o receio, mas creio que é infundado. Por duas razões. Todas essas minorias estariam representadas na mesma proporção em que se encontram na população. Segundo ponto: em qualquer regime inovador democrático precisamos certamente de ter os mesmos controlos e garantias constitucionais que temos actualmente. Ninguém está a dizer que devemos abdicar de mecanismos elaborados ao longo de tantos anos e que asseguram que os interesses das minorias não serão violados pela voz da maioria. Recordemos apenas que as atrocidades que foram cometidas na Europa contra minorias foram feitas por governos eleitos democraticamente. Este sistema não apresenta riscos adicionais.

O parlamento dos cidadãos existiria em paralelo com o parlamento de políticos?
A ideia presente no livro é criarmos um parlamento de cidadãos que teria uma função constitucional com vista a reformar o próprio sistema. Uma das medidas propostas no livro é que um dito parlamento dos cidadãos poderia considerar a criação de uma segunda câmara no nosso parlamento, uma câmara dos cidadãos. Sou muito favorável a esta ideia. Geraríamos um equilíbrio muito interessante e desejável entre as vantagens de ter uma classe política profissional e uma câmara de cidadãos comuns, que poderia evitar muitos dos abusos a que somos sujeitos actualmente.

O que o levou a escrever este livro? Nasce no contexto da sua carreira académica?
Em 2010, terminei o meu doutoramento em Nova Iorque e regressei à Europa para trabalhar como professor numa universidade inglesa. Permitiu-me vir com maior regularidade a Portugal e assistir às barbaridades que estavam e estão a ser implementadas supostamente em nosso nome.

Sou professor de gestão e a gestão é uma disciplina multidisciplinar. Decidi tentar usar este treino que tinha adquirido ao longo dos anos para investigar esta questão enquanto português e europeu do Sul, para tentar tornar claro para mim próprio se existiriam alternativas a estas formas de representação que nos dizem ser o que é possível, "o pior sistema excepto todos os outros". Talvez por algum optimismo congénito meu, tive muita dificuldade em engolir esta lição e decidi investigar se assim era. E descobri que não. Existem mecanismos de Estado que não têm nada de fantasioso ou de utópico, ocorreram e ocorrem em diferentes partes do mundo. Existem, existiram e devemos tentar implementá-las em Portugal.

Como têm sido as reacções ao livro, nomeadamente da classe política?
Talvez a minha favorita seja a de um membro da Câmara dos Lordes ingleses, um antigo ministro do Labour. Disse-me que este livro seria algo que nenhum político profissional gostaria de ler e que talvez por isso todos o devessem ler.

O livro não é um ataque aos políticos, mas antes a constatação que a democracia não está a funcionar.
Escrevi este livro num formato curto e acessível. Não nos falta investigação académica para suportar o que está escrito, falta sim apresentá-la num formato para o cidadão comum. Creio que é uma tarefa que não tinha sido realizada até agora e daí o relativo êxito do livro em Inglaterra. Existe uma falha de comunicação, uma falta de discussão destas alternativas. Quando falamos em alternativas democráticas, com frequência a imagem que nos vem à cabeça são pequenas comunidades vivendo num ponto isolado do país ou do mundo. Não tem que ser assim. Não é reinventar a democracia à minha escala e de três ou quatro amigos, é reinventar a democracia pondo as instituições que temos a funcionar melhor.

Mudanças bruscas tomadas pelos cidadãos não poderiam levar, por exemplo, a uma saída de capitais para outros países?
É um receio compreensível dada a mensagem com que somos bombardeados com tanta frequência e que me parece também ela infundada. O que está a ser proposto é que os cidadãos, de uma forma deliberativa, cuidada e informada, tomem decisões. Porque esperaríamos nós que tomassem decisões que pudessem ter essas consequências?

Segundo: este fantasma do castigo pelas divindades dos mercados e esta ideia que a economia se vai zangar connosco… Viver permanente no receio de que se ousarmos tomar uma decisão vamos ser castigadas por isso? É apenas um dos múltiplos factores a tomar em consideração [pelo parlamento dos cidadãos]. Não sei por que é que este fantasma surge com tanta frequência quando falamos na democratização do regime. Qual é o subtexto? Está implícito que a população não deve ter demasiado controlo porque pode tomar decisões erradas.