Emissão Renascença | Ouvir Online

"O Álvaro" contado por Álvaro

05 dez, 2014 • João Carlos Malta

A Renascença leu o livro que o ex-ministro da Economia escreveu sobre a passagem no Governo. Há de tudo: intriga política, luta contra lóbis, um estrangeirado na luta contra o "status quo" e revelações dos bastidores das negociações com a troika.

"O Álvaro" contado por Álvaro
A entrada de Álvaro Santos Pereira no executivo liderado por Passos Coelho teve um episódio emblemático que marcou o tom dos dois anos que passou na pasta da Economia. A queda de Santos Pereira e o nascimento de "O Álvaro". Em "Reformar sem medo: um independente no Governo", novo livro já nas bancas, o ex-ministro conta a história pelas próprias palavras.

O pano de fundo da acção é uma feira de artesanato. O convite pertenceu a Rocha de Matos, que foi presidente da Associação Industrial Portuguesa, e a temperatura era alta.

Naturalmente e sem dar importância ao gesto, Santos Pereira passa do casaco para as mangas de camisa. Atitude que logo no local, diz, foi considerada "curiosa" num país que gosta tanto de formalismos.

"Mas o mais interessante estava para vir", anuncia. Mergulhemos então no momento criador d' "O Álvaro". Voz ao protagonista que acumula a função de contador da história.

"Assim, numa das paragens que fizemos, um jornalista perguntou-me se eu já estava habituado a ser tratado por ministro. Eu respondi que isso não era relevante, pois preferia que me tratassem por Álvaro".

Nascia o cognome. O que se seguiu conhece-se: um grande falatório. O ex-ministro resume-o em alguns adjectivos com que o presentearam: "ingénuo, desajustado e emigrante". Caía com estrondo a aura de comentador e professor no Canadá. O autor lamenta a mentalidade portuguesa.

"Num país que venera formalismos, um ministro pedir para ser conhecido pelo seu próprio nome foi demais para muito boa gente".
Hoje teria feito diferente?

Nada disso. "Até hoje não lamento o episódio do ‘Álvaro’. Sei bem que, ao ter tido uma postura mais informal, quebrei algumas das regras ou dos tabus que, infelizmente, ainda subsistem na nossa sociedade".

Um ministério ingovernável?
Uma das críticas que se fizeram ainda antes de Álvaro assumir o lugar era a dimensão do ministério. Era um três (Economia, Emprego e Obras Públicas) em um. Mas Passos logo sossegou Álvaro, que assume ter sido uma segunda escolha: a Economia tinha sido desenhada para um "ministro de cabelos brancos", Eduardo Catroga.

O primeiro-ministro não o conseguiu convencer o senador do PSD, mas, para Álvaro, Passos passou a filosofia que queria imprimir. Este deveria ser um gestor dentro do superministério. Ou seja um super-ministro que coordenaria secretários de Estado equivalentes a ministros.

Muitos anteviram a tempestade perfeita, um governante inexperiente, que não conhecia o país (devido aos muitos anos no Canadá), engolido por um mar de sectores e questões para resolver. Ainda para mais num contexto de ajuda externa. "Não me davam mais de seis meses em funções", recorda.

Na primeira abordagem ao ministério da Horta Seca, o autor diz que não foi a dimensão que mais o chocou, mas sim o facto de algumas das pessoas que lá trabalham há 30 ou 40 anos terem vencimentos entre os 500 e os 600 euros. Não é a única vez que faz referências aos salários dos portugueses, no livro. Mais à frente, fala do nível muito baixo do salário mínimo.

O que mais surpreendeu Álvaro, diz ele, foi que com retribuições daquelas existirem contratos de "leasing" de carros de serviço que chegavam aos dois mil euros por mês. "Um escândalo e uma vergonha", insurge-se. E deixa um ataque a Carlos Zorrinho, ex-secretário de Estado da Energia socialista, que teria um Audi A7 encomendado que iria custar 2.700 euros por mês. Afirma que devolveu o bólide à procedência.

Quanto à gestão do ministério, Álvaro resvala para o auto-elogio, como acontece em muitos momentos do livro que lançou esta semana. "No espaço de poucos meses a nossa equipa conseguiu transformar um megaministério alegadamente ingerível num ministério gerido sem grandes sobressaltos".