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Gaspar não quis mais taxas à EDP para não perder dinheiro na privatização

05 dez, 2014 • João Carlos Malta

Revelação do antigo ministro Álvaro Santos Pereira. A Renascença leu o livro que o ex-ministro da Economia escreveu sobre a passagem no Governo. Há de tudo: intriga, lóbis, um estrangeirado na luta contra o "statu quo" e os bastidores das negociações com a troika.

Gaspar não quis mais taxas à EDP para não perder dinheiro na privatização
Os lóbis: uma bandeira de Álvaro Santos Pereira sempre que "guerra" vinha antes deste substantivo. Já sabíamos que assim era e ele muitas vezes o disse e redisse nos dois anos em que esteve no Governo. Não sabíamos é que dentro do próprio Governo o antigo ministro da Economia encontrou resistências: o então ministro das Finanças Vítor Gaspar opôs-se a aceitar que a EDP pagasse uma contribuição especial. Vivia-se o momento pré-venda da posição do Estado na eléctrica.

Mas voltemos um pouco atrás. Se existia alguma dúvida do orgulho de Álvaro no combate que diz ter feito aos lóbis, o autor de "Reformar Sem Medo: Um Independente no Governo ", novo livro já nas bancas, desfá-lo no capítulo que reserva ao tema. E nasce à boleia de um auto-elogio.

"Se há algo de que me orgulho de ter feito durante a minha governação foi a luta contra os lóbis e os interesses instalados. Sei que sou suspeito, mas penso que na nossa democracia não há muitos exemplos de Ministério da Economia tão independentes como o nosso foi", reclama.

Panegírico feito, Álvaro dá nome aos lóbis e conta as histórias que ajudam a recriar os interesses com que teve de se confrontar.

Do sector da energia começa por dizer que movimenta centenas de milhões de euros e que, naturalmente e proporcionalmente, faz mover muitos interesses. O primeiro desafio que se lhe deparou nesta área enquanto ministro é que, se nada fosse feito, o preço da electricidade iria subir 30% para as famílias e 55% para as indústrias.

O risco, crê, era de uma convulsão social. "Fiquei bastante preocupado", lembra. Consequências, lembra, do défice tarifário, através do qual resvala para a crítica a toda a política de energias renováveis do consulado Sócrates (uma pesada factura para os consumidores, critica Álvaro).

Gaspar, o opositor dentro de casa
A EDP surge como actriz principal deste enredo, apesar de as palavras de Álvaro poderem ser interpretadas nesta passagem com "uma no cravo outra ferradura". "Longe de mim duvidar da eventual boa vontade da EDP, mas faz algum sentido o Estado estar dependente de uma empresa privada para poder perceber o impacto que as políticas públicas de apoio ao sector teriam nos preços e no sistema nacional? Não faz. E em nenhum país avançado isto se passa".

Analisado o sector, Álvaro e o seu primeiro secretário de Estado da Energia, Henrique Gomes, que acabou por cair no meio de uma guerra com a EDP, quiseram introduzir uma contribuição especial para desfazer a opinião generalizada de que este era um sector intocável.

Mas, se a batalha se previa dura, ao contar espingardas, Álvaro começou logo por ver nascer um opositor dentro de "casa". "O ministro das Finanças [Vítor Gaspar] não concordou, pois não queria que nada pudesse pôr em causa o encaixe da privatização da EDP".

A posição foi defendida numa reunião no Outono de 2011 em que estiveram também Henrique Gomes e Carlos Moedas. Primeira derrota. Mas Álvaro enquadrou-a como parcial.

"Como naquela altura a restrição financeira e a ditadura das Finanças eram praticamente absolutas, a contribuição sobre o produtor eléctrico ficava pelo caminho, bem como a nossa estratégia de corte de rendas excessivas", lamenta.

Quem se mete com a energia…
Álvaro não deu a guerra por perdida e começou a jogar por fora. Através da troika. Henrique Gomes caiu, mas deixou trabalho que sustentava a teoria de que as rendas pagas as produtoras de energia eram muito avultadas e que as novas taxas eram justas.

A primeira ronda é vencida e os cortes de dois mil milhões avançam. Segue-se um segundo momento de ataque aos "privilégios" do sector energético, cujos objectivos Álvaro não consegue aplicar a tempo, mas deixa cair nas páginas de um jornal como forma de pressão pública antes de sair do lugar.


Foto: Lusa

Mas a imprensa nem sempre foi uma ajuda, relata. Álvaro alerta os incautos: quem se mete com a energia leva dos jornais. E explica a relação: é um sector que vale mais de um quarto da publicidade dos jornais e que em 2011 e 2012, anos de queda de investimento publicitário neste sector, ganhou ainda mais preponderância.

E exemplifica: depois de ter anunciado o fim da garantia de potência durante o período de ajustamento e uma redução de 66% para as centrais térmicas, rebenta nos jornais a crise da gestão do QREN que o opôs a Gaspar.

Não nega que este facto tenha existido, mas recusa que alguma vez se tenha dito ao primeiro-ministro que se ia demitir na sequência da alegada derrota. Dá a entender que o seu conhecimento público apenas serviu para o menorizar para outras guerras.

Quis-se dar a entender que estava cada vez mais esvaziado de competências.

Por fim deixa cair duas histórias. A primeira passada com um alto responsável da EDP que lhe diz que o Ministério da Economia e a troika estavam capturados pelos lóbis da energia contra a EDP. Reacção de Álvaro: "Confesso que me ri a bom rir do que estava a ouvir… Só dava mesmo para rir".

Outra mais grave, pelas implicações estruturais. Um dos produtores de energia (que não nomeia) aborda um elemento da equipa do ministério da Economia. Diz-lhe que, como sabe que o ministério tem poucos meios e tempo, poderia dar uma ajuda e serem eles a fazer a transposição de directivas. "E que depois nos entregariam as leis para fazer o que entendêssemos", acrescenta. A gentil oferta foi recusada, conta, mas esta abordagem faz Álvaro acreditar que o mesmo já tinha acontecido no passado com outros governos.

Mais à frente, o autor abre espaço para falar das contrapartidas militares. Assunto que diz que muitos o aconselharam a não mexer devido aos processos judiciais que decorriam e as suspeitas sobre partidos e ao seu financiamento. Mais uma "alfinetada" a Paulo Portas.

"Não interessa se havia vantagens por explorar para a economia nacional. O importante era manter-me longe desse dossiê para não ficar chamuscado com todas as suspeitas", relembra.

Os outros lóbis
Na resenha dos lóbis com quem se confrontou, ainda enuncia os ambientalistas, os sindicalistas, os casinos, entre outros.

No fim, termina como começou. Com um auto-reconhecimento do trabalho que fez. Todos ficaram a saber: "Não estava ali para fazer acordos mais ou menos obscuros, para apostar nas quimeras dos campeões nacionais, para proteger este ou aquele lóbi, para distribuir subsídios, ou para retribuir favores políticos… Comigo, os lóbis e os interesses ficaram à porta".

Por isso, numa imagem que a imprensa já antes descrevera, diz ter uma "certeza": "os lóbis contra quem lutei abriram garrafas de champanhe ou comemoraram quando eu saí da Horta Seca".