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Paz Ferreira em entrevista. “Europa está sem guarda-redes, sem treinador e sem espírito de equipa”

30 out, 2014 • José Pedro Frazão

Eduardo Paz Ferreira assume-se um europeísta de longa data. Com apenas 23 anos, foi chefe de gabinete de Medeiros Ferreira, o ministro que em 1977 começou o pedido de adesão de Portugal à CEE. O catedrático de Direito acaba de escrever “ Da Europa de Schumann à Não-Europa de Merkel”.

Paz Ferreira em entrevista. “Europa está sem guarda-redes, sem treinador e sem espírito de equipa”

Chega bem-disposto, aceita posar na emblemática escadaria da Renascença ao Chiado. A rádio não lhe é estranha, esteve na Emissora Nacional nos idos de 75. De microfone fechado lembra o turno da tarde que partilhava com Herberto Hélder, entre outros. E logo começa a conversa em torno do rumo da Europa, pontuada por uma certa ironia, açoriana talvez.

Comecemos pelos dez anos de Durão Barroso como presidente da Comissão Europeia. Neste momento de transição, como classifica esta década Barroso em Bruxelas?
Num certo sentido, Durão Barroso teve o azar de estar no melhor sítio no pior momento. A sua Comissão ficou muito associada à imagem de um período de austeridade e da imposição, pela Comissão, de medidas muito impopulares. Foi uma Comissão que não tinha muita força política no seu conjunto. A nova Comissão terá mais peso político, com vários ex-ministros e primeiros-ministros. A Comissão foi apanhada pela transição posterior ao Tratado de Lisboa, que reduziu sensivelmente os poderes entregando-os ao Conselho Europeu. Durão Barroso ficou com menos margem de manobra nos últimos anos de mandato. Sinto que por vezes teve dificuldade em equilibrar as várias pressões que sofria, particularmente da Alemanha. Apareceu diversas vezes excessivamente "colado" à Alemanha, apesar de algumas situações de crise com Berlim.

Poderia ou deveria ter feito uma ruptura com a Alemanha? Teria sido benéfico para a Europa?
Não diria uma ruptura, mas se tivesse marcado mais algum distanciamento. Mas não tinha sequer apoio de outros governos para o fazer. Foram deixando a Alemanha instalar-se no poder. Não está dito que depois do tal "pior momento" de Durão Barroso não venham momentos ainda piores.

E a Comissão Juncker, será mais do mesmo? No seu livro, fala de "um cheirinho a alecrim".
Isso é uma brincadeira com a música do Chico Buarque [N.R: Tanto Mar, de 1975], no sentido de dar alguma esperança num horizonte que não é muito optimista. Apesar de tudo, Juncker foi eleito pelo Parlamento Europeu, numa espécie de revolução, o Tratado de Lisboa não era claríssimo quanto às competências do Parlamento. Apresenta um programa de "austeridade mitigada", a ideia da flexibilização das metas da austeridade e da aproximação a uma política amiga do desenvolvimento e crescimento económico. Daí a ideia do "cheirinho a alecrim", esperemos que se torne mais intenso... É evidente que vai ter muitas dificuldades em concretizar isto.

Sobretudo se a Alemanha não mudar a sua posição?
Sim, mas aí é um pouco difícil. Não há sinais claros de que vá mudar. Apesar de tudo há pequeníssimas coisas que têm acontecido. A Alemanha começa a ser atingida finalmente pela crise económica. Parecia inexpugnável e isso talvez os faça pensar um pouco. Conhecendo a psicologia alemã e todos os fantasmas do passado, a reacção talvez seja cerrar fileiras e insistir neste tipo de política. Mas está a haver muitas pressões do Fundo Monetário Internacional e sobretudo há uma espécie de revolta dentro da União Europeia no eixo França - Itália. A Alemanha nunca foi confrontada com dois países que, no seu conjunto, têm uma população e um espaço territorial maior. E a dizerem " não, não, nós não vamos aceitar que Bruxelas ou Berlim imponham a nossa política económica."

O contraponto a Berlim virá na sua maioria de um trabalho mais firme da Comissão com Juncker ou desse eixo franco-italiano, de Renzi e Hollande?
Embora Hollande seja um presidente desacreditado e eu fiz parte dos grandes entusiastas dele.

Já agora isso torna-o mais céptico em relação a estas personagens que anunciam revoluções?
Sem dúvida. Não podemos ter ilusões. Um dos dramas é que a social-democracia europeia não tem um projecto realmente alternativo à austeridade. Em França, de forma inesperada depois de tanta cedência à Alemanha, nomeiam um primeiro-ministro ideologicamente próximo de Merkel e que agora surpreendentemente vem dizer que " quem manda aqui somos nós". É um movimento  um pouco errático porque na própria Itália há Renzi, que tem sido notável. Como me aconselhou de forma implícita, é preciso ter cuidado com os entusiasmos fáceis. Nos últimos tempos a única personalidade que me entusiasma - essa sem qualquer reserva - é o Papa. Pela sua enorme coragem, foi a única pessoa capaz de assumir a necessidade de acabar com uma sociedade  que valoriza o dinheiro até ao absurdo e esqueceu totalmente os mais desfavorecidos, considerados descartáveis ou substituíveis. Não se esqueça que a primeira viagem que o Papa faz foi a ilha de Lampedusa, zona maldita onde chegam os mortos e quase-mortos que tentam chegar à Europa.

E no entanto não é um europeu.
Um dos grandes dramas da Europa é que está a perder a relevância e a importância. No meu livro falo da "Bela Adormecida", a Europa tem um património artístico, cultural que levará a que seja sempre um continente belo. Mas será que esse património vai ser uma espécie de museu ao ar livre que os chineses vêm fotografar e nalguns casos comprar, como vemos em Portugal? A Europa não tem neste momento um pensador extremamente marcante. Com uma pequena excepção em Thomas Piketty, que fez este livro " O Capital no Século XXI" agora traduzido em Portugal.

Mas o adormecimento é das elites e lideranças políticas ou também já é dos cidadãos?
Receio que infelizmente também é dos cidadãos. Noutro dia, um político canadiano dizia na Gulbenkian que Portugal era "o cão que não ladrava na Europa". É uma boa expressão para se referir à passividade com que a população portuguesa tem aceitado as medidas de austeridade. Há dois anos havia grandes manifestações que chegavam a juntar 500 mil pessoas na rua.

Que é feito dessa gente?
É curioso. Na última grande manifestação, as imagens já eram tristíssimas. Gente que desfilava com grande tristeza, sem nenhuma energia. E havia um problema de base no facto de ter sido convocada por estruturas inorgânicas. Permitiu que toda a gente se juntasse, muito mais do que se fosse convocada por sindicatos ou partidos, mas também contribuiu para a fragilidade. Aqueles 500 mil cidadãos não tinham um interlocutor, não havia ninguém que pudesse chegar ao Governo e dizer " eu estou aqui como chefe a transmitir a posição destas 500 mil pessoas". É uma coisa surpreendente, uma manifestação que mostra tanto desagrado e que acaba tão pacificamente, cantando o Hino Nacional ou o "Grândola Vila Morena". Foram pacatamente para casa, foi o último exorcismo. As pessoas aos poucos foram-se convencendo que nada servia, nada resolvia os seus problemas.

Houve um conformismo na sociedade portuguesa?
Não nos podemos esquecer que tivemos muitos anos de Estado Novo, de total conformismo.

Já lá vão quarenta anos.
O salazarismo deixou duas grandes marcas muito fortes na sociedade portuguesa. Uma de anti-parlamentarismo, contra a política, a ideia de que a política é uma porcaria. Hoje em dia os cidadãos sentem muito isso. A classe política está muito desacreditada. Segundo aspecto, o salazarismo foi uma primeira forma de austeridade, pela política económica do Estado Novo. No imaginário português há ainda lugar para o valor da austeridade, vista com simpatia como ideia de alguém que se porta bem, comparado com as  "cigarras" que andaram à solta a gastar dinheiro à solta que não tinham, comprando "plasmas" e carros. Diga-se de passagem, importados à Alemanha que tanto se queixa tanto dos nossos gastos.

A austeridade é prescrita por um país democrático, a Alemanha.
Longe de mim contestar o carácter democrático da Alemanha. Mas eu não votei na senhora Merkel. Não percebo porque é que ela terá que decidir do meu destino.

Há uma metáfora futebolística no seu livro. O que é que quer dizer com uma União Europeia sem guarda-redes, sem treinador e sem espírito de entreajuda?
A ideia do guarda-redes tem a ver com o Banco Central Europeu, colocado como um banco independente que não pode auxiliar os Estados, como prestador de última instância. Confiscou aos estados a política monetária, deixando-os sem meios de se defenderem.

Sem treinador, porque não há um líder europeu consensual. A senhora Merkel conseguiu fazer sem armas aquilo que os alemães fizeram com armas e terror: subjugar totalmente a Europa.

Sem espírito de equipa, porque em vez de se ter afirmado a solidariedade entre os vários estados europeus, nunca a Europa esteve tão dividida entre norte e sul e entre ricos e pobres.

Perante essas três falhas, propõe três "dês". Desenvolver, “Desgermanizar”, Democratizar. Começando pelo primeiro, o guarda-redes bem pode ser o reforço de Mário Draghi e do BCE?
Sim, de alguma forma. Nunca fui muito simpatizante da independência do Banco Central Europeu. O mandato do BCE puramente ligado à inflação é absurdo. Hoje o problema é a deflação. Tínhamos que ter um banco central mais virado para o apoio ao crescimento. Tínhamos sobretudo que ter um orçamento da União significativo. Seria mais fácil acudir aos países em dificuldade. Terceiro ponto, teríamos que voltar ao investimento. O que implica que se pense seriamente na questão da dívida. Chame-se o nome que quiser, reestruturação, renegociação.

Qual é o termo que prefere?
Eu assinei um manifesto onde se fala em reestruturação da divida. Por vezes isso choca mais as pessoas, mas estamos longe de propor uma solução radical. Queremos que as pessoas se ponham a conversar.

Uma das suas propostas é tirar a Alemanha do Euro e colocar o Euro sem moedas fortes.
Como sabe os alemães pensam que vamos ser nós a sair. Eu devolvo-lhes o convite. Se a Alemanha está tão desconfortável com a companhia de um conjunto de estados, por favor saia. Volte ao seu marco tão apreciado e nós vamos ter um euro mais fraco, com as consequências positivas que terá sobre as exportações. Obviamente que isto implicaria que a França e a Itália se mantivessem no Euro. Sairiam a Alemanha e os seus aliados naturais, os holandeses, finlandeses, austríacos. Isto teria que ser articulado nas relações entre os dois blocos.

Isso não seria uma machadada no projecto europeu ? O eixo franco-alemão é fundamental na estrutura da Europa.
Foi fundamental, deixou de ser. Realmente quem aparece como possibilidade de montar um eixo alternativo é Matteo Renzi. Depois do “Merkozy” teríamos um “Merkorenzi”, em que um dos parceiros divergia um pouco do outro.

Isto é a tal "desgermanizacao"?
Exactamente. Nada contra a Alemanha, pelo contrário, eu próprio tenho uma descendência alemã. Há aquela velha questão colocada de forma exempla pelo Thomas Mann: queremos uma Europa alemã ou queremos uma Alemanha Europeia? Definitivamente quero esta última.

Como é que isso se articula com a ideia de uma federalização política que propõe no seu terceiro "dê" de Democracia?
Se estamos a permitir que os orçamentos sejam discutidos, não pelo Parlamento, mas por entidades exteriores (Bruxelas valida previamente o orçamento) estamos a esvaziar os parlamentos. Então é melhor avançarmos para a união política, com um Parlamento Europeu com poderes reais para aprovação do orçamento.

E Portugal? Qual é o primeiro passo de mudança a que Portugal deve entregar-se?
A reestruturação da divida é necessária, a negociação com outros parceiros europeus é necessária. Não sou um radical, não tenho ideia que possamos sair do Euro batendo com a porta de forma estrondosa. Acho que é um risco excessivo. É preciso concertar esforços.

Os mercados não iriam penalizar um país periférico com reestruturação da divida?
Tudo depende da forma como as coisas forem encaradas. A maior parte da divida pública portuguesa está na mão de instituições internacionais, FMI,BCE, alguns fundos e bancos portugueses. Muita dessa dívida tem juros altíssimos e hoje em dia é uma aplicação sem risco, porque o BCE a garante, pela política de Draghi. É razoável propor aos credores que aceitem uma solução que permita garantir os pagamentos futuros em vez de insistir noutra que nos vai conduzir à falência.