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Ex-secretário-geral da NATO defende “botas no terreno” para combater Estado Islâmico

22 mai, 2015 • José Pedro Frazão

Numa entrevista à Renascença, o homem que liderou a Aliança Atlântica até ao ano passado pede acção por parte dos países da região num combate onde, defende, a NATO não deve estar.

Ex-secretário-geral da NATO defende “botas no terreno” para combater Estado Islâmico
Anders Fogh Rasmussen foi o primeiro-ministro que apanhou com a primeira grande crise dos “cartoons” de Maomé. Dez anos depois, o dinamarquês faria tudo de novo e mantém a recusa em pedir desculpas aos muçulmanos que as pediam.

Na NATO, embarcou literalmente na montanha russa. Quatro anos e meio depois da Cimeira de Lisboa que apontou o caminho de uma parceria estratégica entre Moscovo e a Aliança Atlântica, Rasmussen reconhece que Putin virou o jogo no caminho de uma nova e prolongada Guerra Fria.

Nesta entrevista à Renascença, que pode ouvir esta noite no programa “Fora da Caixa”, lamenta que países como a Grécia alimentem as ambições russas de estender de novo o poder a chancelarias da vizinhança.

O maior desafio da NATO no momento é a Rússia?
É um grande desafio, por causa da agressão russa contra a Ucrânia. Mas deixe-me acrescentar que a ameaça com origem no Estado Islâmico no Médio Oriente deve ser também levada muito a sério.

Desde que saiu do cargo de secretário-geral da NATO, o senhor parece-me mais assertivo nessa confrontação com a Rússia.
Bem, ainda na qualidade de secretário-geral da NATO, fui muito franco em relação a essa matéria. Isto relaciona-se com a essência da nossa Aliança. Todos os aliados, incluindo os países bálticos e do leste, têm que ter a garantia de que de que estamos unidos e prontos a proteger e defendê-los contra qualquer agressão. Estou apenas a chamar os bois pelos nomes. Porque é importante relatar o que realmente acontece no terreno.

Mas no cargo de secretário-geral da NATO estava também preocupado com as relações NATO-Rússia. Era mais diplomático. Agora já não tem que ter essa preocupação tão em mente.
Na verdade, quando assumi o cargo, em Agosto de 2009, uma das prioridades que estabeleci foi desenvolver o que chamámos de “parceria verdadeiramente estratégica” entre a NATO e a Rússia. Porque acredito profundamente que o que é correcto, tanto para a Rússia como para a NATO, é a cooperação. Temos tantos interesses comuns. Curiosamente, foi aqui mesmo, em Portugal, na Cimeira NATO-Rússia, em Novembro de 2010, que adoptámos uma declaração conjunta que servia de base a uma “parceria verdadeiramente estratégica” entre a NATO e a Rússia. Eu estava muito a favor disso. Mas um dia acordámos em Março de 2014 e tomámos consciência de que a Rússia tinha atacado a Ucrânia, conquistando território pela força e mais tarde anexou ilegalmente a Crimeia a favor da Federação Russa. Claro que tivemos que nos adaptar a isso.

E agora, é possível voltar ao tempo em que se estabeleceu essa estratégia? Ou primeiro será sempre necessário resolver a crise ucraniana?
Infelizmente, penso que vai durar muito tempo a normalizar relações com a Rússia. Na verdade, penso que entrámos numa era que tem muitas semelhanças com a Guerra Fria. E vai durar muito tempo porque faz parte de um “masterplan”, um plano russo mais abrangente. Um plano que passa por restabelecer uma esfera de influência russa na sua vizinhança. [Passa por] manter os seus vizinhos enfraquecidos, dependentes face à Rússia, evitando que procurem uma integração na NATO e na União Europeia. Por essa razão, temo que a Rússia mantenha vivo este conflito por um longo, longo período.

E como vê a posição manifestada por alguns países de Leste ou pela Grécia em relação à Rússia?
Deixe-me ser honesto. Penso que é bastante perturbador ler declarações conjuntas da Grécia com a Rússia. Penso que a Grécia precisa da solidariedade da NATO e da União Europeia. A Rússia não pode resolver os problemas económicos da Grécia. A Grécia precisa da União Europeia e da NATO. E deve ter isso em conta.

Este é um plano-mestre da Rússia ou de Vladimir Putin?
É importante perceber que isto não é apenas algo relacionado com a pessoa de Putin. Isto vai mais fundo. É um desejo russo de restaurar a grandeza da Rússia. Penso que, de múltiplas formas, a cultura russa tem muito a dar à Europa. Mas nunca poderemos aceitar que uma grande nação possa ditar as políticas dos seus vizinhos mais pequenos. Isso aconteceu num passado que deixámos para trás. No século XXI, não é aceitável que grandes países conquistem território pela força e desestabilizem os seus países vizinhos.

Voltando atrás, como vê a situação da Grécia, juntando o problema económico ao quadro estratégico e até militar? Como é que vê este “processo grego”?
Há, de facto, muitas perspectivas estratégicas nesta relação da Grécia com os seus parceiros europeus e aliados da NATO que devem ser tidas em conta. Problemas económicos acrescidos podem ter repercussões negativas na Europa. Claro que estou muito preocupado com a Grécia. Espero que a Grécia e a União Europeia encontrem um caminho para a frente.

Faria algo de diferente na resposta à crise dos “cartoons” que enfrentou há 10 anos?
Não. Dez anos depois, olhando retrospectivamente, penso que tomámos a decisão correcta. Vários países muçulmanos pediram-me para apresentar desculpas. Nunca o fiz. Foi a decisão correcta, porque isto tem a ver com a liberdade de expressão. É essencial para qualquer democracia funcional que exista o direito à expressão livre das opiniões, incluindo um debate fundamental sobre a religião.

Tem escrito alguns artigos sobre a forma como se pode confrontar o Estado Islâmico. O que propõe para resolver esta questão?
Foi perturbante ouvir agora as notícias sobre o avanço do Estado Islâmico na Síria. Demonstra que é da maior importância que a coligação internacional continue a sua campanha de ataques aéreos contra o Estado Islâmico. Mas tenho que acrescentar que a campanha aérea não completa o trabalho. Precisamos de mais, precisamos de “botas no terreno”. A única questão é: de quem serão essas botas? Na minha opinião, os países da região devem enviar tropas para combater o Estado Islâmico.

E não a NATO?
Não a NATO. Não uma força dominada pelo Ocidente, mas uma força com tropas da região.

Nem mesmo uma participação na operação naval que a União Europeia está a montar?
Bom… talvez algumas nações europeias ou os Estados Unidos possam providenciar apoio. Mas o combate ao Estado Islâmico é essencialmente uma responsabilidade dos países da região.