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Entrevista a Abraham Skorka

Perseguições religiosas. "Os que se calam deviam gritar", diz o "amigo judeu" do Papa

21 mai, 2015 • José Bastos

Em entrevista à Renascença, o rabino argentino, conhecido como o "amigo judeu do Papa", defende que "estão a chegar ao fim dois mil anos de desencontros entre cristãos e judeus".

Perseguições religiosas. "Os que se calam deviam gritar", diz o "amigo judeu" do Papa
“É um drama o que se passa com a perseguição à cristandade”, afirma o rabino Abraham Skorka sobre a situação no Médio Oriente. Em Portugal para as “Conferências do Estoril”, o líder religioso da comunidade judaica na Argentina fala à Renascença sobre o Papa Francisco, de quem é amigo, do Estado Islâmico e do atentado de 1994 à AMIA – Mutualista Israelita – de Buenos Aires.
"É um drama o que se passa com a perseguição à cristandade", afirma o rabino Abraham Skorka, reflectindo sobre a situação no Médio Oriente e noutros pontos do globo.

"Na comunidade internacional os que se calam deviam gritar bem alto", sustenta. O líder religioso da comunidade judaica na Argentina defende que "o mundo tem de deixar de ser tão indiferente à barbárie em curso e estar mais atento à dimensão espiritual do Homem".

O rabino teve como companheiro de múltiplas jornadas literárias e televisivas Jorge Mario Bergoglio, eleito Papa, e diz agora que Deus se envolveu directamente entre os dois para que "deixem uma marca na história".

Conhecido como "o amigo judeu do Papa", defende que "estão a chegar ao fim dois mil anos de desencontros entre cristãos e judeus". Em Portugal para as Conferências do Estoril, Abraham Skorka fala à Renascença do atentado de 1994 à AMIA – Mutualista Israelita, de Buenos Aires e do futebol argentino, paixão partilhada com o amigo, adepto do San Lorenzo de Almagro.

Mantém uma relação muito próxima com o Papa. Como se conheceram?
Eu representava o culto israelita nas celebrações solenes Te Deum incluídas nos dias assinalando a independência da Argentina e foi aí que começámos a conhecer-nos. Foi, o então, arcebispo de Buenos Aires quem inicialmente deu o primeiro passo. Foi o Papa quem se aproximou com piadas sobre futebol. Ele sabia que eu sou adepto do River Plate. Ele é do San Lorenzo de Almagro. Através dessas piadas, dei conta de que me passava uma mensagem: 'A minha porta está aberta ao diálogo'. Nesse momento, ficava, então, eliminada toda a distância que poderia haver entre o líder espiritual de uma congregação judaica e o arcebispo primaz de Buenos Aires. Recordo, o Papa João Paulo II, na altura, ainda não o havia nomeado cardeal.

A partir desse momento surgiu um livro comum e um momento de grande transcendência simbólica: a viagem do Papa à Terra Santa com um rabino, você, e um líder muçulmano como membros do séquito papal. Nunca antes se tinha visto algo assim.

Que sementes ficaram?
A ideia foi deixar um cunho, um selo, uma mensagem que, queira Deus, dê os seus frutos a curto prazo. Se isso não acontecer já, seguramente, deixará os seus resultados no longo prazo. Que o caminho do futuro seja o do encontro entre amigos que se conhecem. Se queremos projectar um sentido muito amplo que seja um encontro entre gente que é capaz de se reconciliar. Quando sonhei com esse abraço, o que disse ao Papa Francisco foi que a ideia era que o nosso abraço simbolizasse que estão a chegar ao fim os 2 mil anos de desencontros entre judeus e cristãos.

Estamos então entrados numa nova era?
Há um desenvolvimento muito positivo que já tem uns 50 anos. Uma aproximação que foi avançando, aprofundando e estamos agora num momento muito bom da relação entre judeus e cristãos. Temos de ver que continuidade podemos dar a este momento. Hoje em dia o Papa está a enfrentar múltiplos problemas. Quando antes estava em Buenos Aires tinha um espectro de problemas que, no Vaticano, sofreu uma enorme multiplicação. Agora não podemos pedir que o Papa consagre boa parte do seu tempo a esta questão, mas que ele continua sempre a trabalhar neste desafio, disso não tenho a menor dúvida.

O Papa com Skorka, em Israel. Foto: Jim Ho/EPA

Em que medida o Papa está a ser 'o' elemento catalisador da paz no Médio Oriente?
O Papa Francisco tornou-se numa das referências de liderança a nível mundial. Está a usar esse peso político no plano planetário para tentar lavrar caminhos que conduzam à paz. É isso que o Papa Francisco não se cansa de fazer. A outra parte está nas mãos de Deus.

Apoia a solução de dois Estados para Israel e Palestina, posição sempre defendida pelo Vaticano?
Na essência essa é a solução lógica. É a solução que, de uma forma ou de outra, no final irá trazer a paz, porque no momento em que exista um estado de direito palestiniano terá, evidentemente, de reconhecer o Estado de Israel. Essa é também a posição do Vaticano. No sentido de, antes de tudo tentar solucionar problemas humanas, o Vaticano, ou pelo menos, a atitude do Papa é reconhecer totalmente o direito do povo judeu à terra de Israel. Demonstrou isso quando prestou homenagem a Theodor Herzl, o fundador do moderno sionismo político, e continua a trabalhar nesse sentido.
Agora, Deus terá de ajudar em toda esta tarefa. Quanto aos dois estados há uma realidade. Há milhões de palestinianos a viver em Gaza, entre a Judeia e Samara (Cisjordânia). E terão de ter a sua própria autonomia de uma forma organizada e legal. Também reconhecendo o Estado de Israel que, por seu turno, terá de reconhecer o Estado da Palestina.

Como avalia a canonização, no último domingo, das primeiras santas palestinianas dos tempos modernos?
A mensagem é a de que existe há já muito tempo uma presença cristã no Médio Oriente. Falo dessas comunidades cristãs que hoje em dia estão a ser alvo de destruições por parte dos fanáticos do ISIS [autodenominado Estado Islâmico].

Uma das formas mais eloquentes de fustigar essa barbárie que se abate na direcção das comunidades cristãs é justamente através da canonização de duas freiras que tanto fizeram pelas comunidades em que viviam na Terra Santa. É muito claro que o que se passa agora na perseguição à cristandade é um drama inominável.

Como deve reagir a comunidade internacional à perseguição religiosa em curso e a fenómenos como de pura barbárie como o Estado Islâmico?
Deve cortar todas os meios que sustentam o ISIS. Economicamente e com armas. Como foi possível terem-se armado com este grau de sofisticação bélica?

Intervir militarmente com "boots on the ground" deve ser uma opção? Há um ponto de não retorno na barbárie em que essa é a única saída?
Creio que, antes de tudo o resto, as vozes de todos devem fazer-se ouvir de uma forma muito mais clara. Muitos condenam, mas há muitos que calam. Os que se calam deviam gritar bem alto. Exclamar, mesmo, porque o que se passa é terrível. Mas não apenas com as comunidades cristãs. Também é contra todos aqueles muçulmanos que não comungam destes desvios.

Que avaliação faz dos riscos para o mundo da luta em curso no seio do islão, sunitas vs xiitas, Riade vs Teerão?
O mundo tem de ser muito mais sensível e atento à dimensão espiritual do Homem. Devia estar mais comprometido com valores de justiça, de rectidão e deixar de ser tão indiferente à barbárie em curso. Agora, quais são as causas da barbárie? São muitas, mas eu definiria com uma expressão: o esvaziamento e a distorção total do elemento religioso. Porque o verdadeiro islão, o islão puro, não é isto a que assistimos.

O atentado de 1994 à comunidade judaica em Buenos Aires é o maior sofrido pelos judeus depois da II Guerra Mundial, mas está esquecido na Europa. As investigações levaram ao Irão como supostos autores morais, mas tarda em fazer-se justiça. Como vê esta ferida aberta?
Vejo-a com uma enorme dor. Mais de 20 anos depois, não podemos estar ainda à espera de uma resposta jurídica sobre o que se passou. Não é admissível. Não podemos ter tido tantas imperfeições na investigação para utilizar uma expressão benigna. A investigação foi muito distorcida. Passaram-se coisas que não deveriam nunca ter ocorrido. Falo do que é público: desaparecimento de provas, etc., etc.. Tenho uma dor profunda. Uma decepção profunda.

Interesses de estado, como uma eventual aproximação de Buenos Aires a Teerão, podem fazer com que a política esqueça a justiça?
Não é uma questão de justiça ‘per se’. Na memória de milhares de argentinos esta é uma questão por resolver. Algum dia saberemos a verdade e, de alguma maneira, se fará justiça.

Acabando este diálogo, de novo, num plano íntimo. Como reagiu quando deu conta que entre os seus amigos pessoais tinha agora um Papa?
Senti a presença de Deus. Nós que estávamos a trabalhar e a falar do que devia ser uma liderança espiritual. Temos Deus muito presente nas nossas vidas. Por casualidade eu sou rabino e ele um sacerdote católico. Deus está muito presente entre nós. Além da emoção pessoal, senti que Deus se envolveu muito directamente nas nossas vidas. Senti como se Deus entrasse mais profundamente no nosso diálogo, entre os dois, não no diálogo que eu e ele, Francisco, mantemos com Deus. Deus meteu-se no meio e disse: 'Bom, vocês falaram e agora Eu dou-vos a possibilidade de fazer algo'.

Acredito que o Papa Francisco sinta o mesmo que, numa dimensão muito mais pequena, eu estou a sentir. É a oportunidade que Deus nos dá de deixar uma marca na história, um ponto de inflexão.

Mas, permita-se a nota mais descontraída, entre River Plate e San Lorenzo, Deus não tem preferências...
Não sei. Mas na Argentina dizem que Deus é do Boca Juniors. Vamos lá saber. Só Deus sabe.