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Crónica

Quanto pesa um corpo sem vida?

20 abr, 2015 • Catarina Santos

Vamos ouvir novamente garantir que "nunca mais". Até termos motivos para perguntar de novo quanto pesa um corpo sem vida e quanto tempo dura o peso de 900.

Quanto pesa um corpo sem vida?
Quanto pesa um corpo sem vida? Quanto pesam 400? E 900? Pesam mais ou menos se forem filmados pelas televisões? E quanto dura esse peso?

No rescaldo de mais uma série de naufrágios no Mediterrâneo, soltam-se palavras de choque, denuncia-se que é "intolerável" e voltamos a ouvir que "nunca mais". Outra vez. Como em Outubro de 2013, quando um pesqueiro de 20 metros se desfez em fogo ao largo de Lampedusa, deixando 366 mortos ao alcance das câmaras dos jornalistas estacionados na ilha.

Não foi a primeira tragédia do género, mas o coro de lamentos que se seguiu foi sem dúvida o mais sonante. As imagens explícitas obrigaram a olhar o horror de frente, ou pelo menos a comentá-lo.

Nesse mesmo Outubro o governo italiano lançava uma missão de busca e salvamento em larga escala, para tentar impedir que a vergonha voltasse a dar àquela costa. Em Lampedusa, o então presidente da Comissão Europeia entoava palavras profundamente simbólicas: “Uma coisa é ler relatórios, outra é ver na televisão, outra é contactar 'in loco' com o sofrimento e a indignação das pessoas. Aquela imagem de centenas de caixões nunca sairá da minha cabeça. É algo que não se pode esquecer", dizia então Durão Barroso.

Um ano depois, a missão "Mare Nostrum", que Itália lançou na altura, tinha salvado mais de 100 mil pessoas. Os centros de acolhimento abarrotavam de migrantes e o governo italiano continuava a ameaçar acabar com a missão a qualquer momento se os restantes estados-membros não partilhassem a responsabilidade pelo problema.

Os testemunhos que a Renascença recolheu na Sicília por essa altura, junto de quem trabalhava no terreno com os migrantes, espelhavam prognósticos de um drama humano sem precedentes se a ajuda no mar diminuísse. Um mês depois, nascia a europeia "Triton" – uma missão com muito menos meios e muito menos alcance – e morria a "Mare Nostrum".

Ninguém queria ter motivos para dizer "eu bem alertei". O que está em causa no Mediterrâneo, o cemitério que se oculta por baixo daquele profundo azul, é demasiado grave para que se perca tempo a rebobinar o calendário. Mas desta vez não há imagens de corpos a ferir os olhos europeus. Em poucos dias poderão surgir alguns caixões e é previsível que uma nova onda de lamentos compareça em cerimónias de homenagem.

Vamos ouvir novamente garantir que "nunca mais". Até termos motivos para perguntar de novo quanto pesa um corpo sem vida e quanto tempo dura o peso de 900.