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Há quatro anos, uma “Primavera” derrubou a ditadura egípcia. Mas deu lugar a "nova ordem musculada"

25 jan, 2015 • Ricardo Vieira

Revolta popular no Egipto começou a 25 de Janeiro de 2011. António Dias Farinha, director do Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Lisboa, considera que só o tempo dirá se valeu a pena.

Há quatro anos, uma “Primavera” derrubou a ditadura egípcia. Mas deu lugar a "nova ordem musculada"

Quatro anos depois da revolta popular que derrubou o ditador Hosni Mubarak, o Egipto é liderado por uma “nova ordem musculada”. Os militares tomaram o poder e a Irmandade Muçulmana foi afastada, num país onde “não existe espaço para duas elites a mandar”, afirma António Dias Farinha, director do Instituto de Estudos Árabes e Islâmicos da Universidade de Lisboa.

Em entrevista à Renascença, por ocasião do quarto aniversário da chegada da Primavera Árabe à praça Tahrir, no Cairo, que se assinala este domingo, o investigador fala em indícios de estabilidade e alguns progressos, mas avisa: só o tempo dirá se valeu a pena. Detecta um “infeliz” ponto de contacto entre Egipto e Portugal: “O sistema de adiar a resolução de problemas.”

Quatro anos depois da revolta da praça Tahrir, era esta a mudança que os egípcios esperavam?
Estes acontecimentos devem inserir-se sempre na longa duração da situação política desse grande país. O Egipto foi independente ou quase independente durante muito tempo, apesar de pertencer ao império Otomano durante alguns séculos. Teve uma presença inglesa relativamente discreta, uma presença francesa de grande influência cultural e depois uma série de generais, a começar pelo Presidente Nasser, que continua a ser o único líder carismático de todo o mundo árabe. Depois, Sadat opera uma mudança que já vinha a ser preparada no sentido de se alinhar bastante com os Estados Unidos. A partir de Sadat, que celebrou a paz com Israel, o Egipto retomou essa linha de evolução que vai depois do assassinato de Sadat... e aqui temos de introduzir algo de diferente do que eu estava a dizer, que é a influência da Irmandade Muçulmana.

Qual a importância desse grupo na sociedade egípcia?
Essa Irmandade vai entroncar nos princípios do salafismo do século XIX. Fundada por Hassan al-Banna [em 1928], consiste numa atenção particular à “sharia”, a lei muçulmana tradicional, depurada de muitos dos seus elementos, mas, por outro lado, com um radicalismo grande e uma assistência e organização social também importantes. Quer dizer que passa a haver no mundo actual do Egipto duas forças que se organizam de forma muito evidente: o exército, poderosíssimo, com muitas centenas de milhares de homens e que é também uma grande e sólida organização social; e a própria Irmandade Muçulmana, que desenvolveu um sistema semelhante de assistência social às populações mais desfavorecidas. Isso significa que também dispõem de sólidas bases de apoio.

Neste momento há espaço para os dois no Egipto?
Com a vitória do exército, a Irmandade ficou relativamente afastada do centro do poder. Mantém a sua influência, mas apenas ao nível de organização social, enquanto o exército tem a vantagem de ter a força com ele. Mas existem múltiplos laços entre as duas organizações. Muitos elementos ligados à Irmandade também pertencem ao exército e muitos militares têm simpatia pelas ideias da “sharia”, tal como a entendem os irmãos muçulmanos. Isso significa que existe uma certa porosidade, ligação, osmose entre as duas. O que não existe facilmente é lugar para duas elites a mandar no Egipto.

E tem havido perseguições...
Depois daquele susto que foi a condenação à morte de centenas de opositores ao exército, o que é certo é que o Egipto tem, muitas vezes, uma maneira suave de fazer as coisas, de resolver esses problemas. É um sistema que, infelizmente, Portugal também conhece muito bem: adiar os problemas, adiar a resolução do problema. Mesmo as manifestações da praça Tahrir, com um ou outro excesso, com bastantes mortos e destruição de alguns edifícios, não resultaram numa guerra civil. Isto significa que no Egipto mantêm-se ligações diversas entre as pessoas, que é possível manter relativamente tranquilas.

O actual regime vai manter-se de forma estável?
É muito provável que exista alguma estabilidade porque os chefes militares terão percebido que não se podem constituir numa casta sem ligação à população. Era o que estava a acontecer com Mubarak, que tinha praticamente nomeado o filho como herdeiro, a instituição de um regime quase monárquico. Dentro das forças armadas essa ideia foi ultrapassada, nunca mais se voltou a tentar e o mais que se produziu foi uma certa libertação e esquecimento do velho Mubarak e tentar passar uma esponja sobre isso e sobre o anterior Presidente Mohamed Morsi.

Em comparação com a era Mubarak, houve progressos?
Houve algum progresso na medida em que agora se percebeu que também é necessário uma estabilidade no Egipto, em particular por causa dos estrangeiros, do turismo, que é decisivo para a economia egípcia. A necessidade de encontrar uma certa tranquilidade impõe-se a todos os egípcios, nomeadamente à população mais pobre, que vê nos pequenos empregos do turismo o seu principal suporte para as dificuldades da vida.

A revolta da praça Tahrir valeu a pena?
Só o futuro o dirá. Estas revoltas acontecem frequentemente na história das populações por uma razão essencial: os regimes imutáveis tendem a fechar-se na sua dimensão própria e apenas procuram manter o poder, ganhar e conservar o poder, provocando dificuldades da mais variada ordem para toda a população. Mesmo nos chamados países  democráticos, como assistimos recentemente, há, de vez em quando, sobressaltos que alteram num sentido ou noutro a evolução das coisas. Sobretudo no caso dos países democráticos, a alternância do poder é a melhor garantia de resposta aos anseios da população.

Os actuais líderes do Egipto compreendem isso ou vão cometer o mesmo erro de Mubarak?
Existe vontade de estudar a história mas, por vezes, a vontade do poder é ainda maior. No entanto, durante algum tempo há duas evoluções possíveis: um regime de ditadura forte, com castigos aos opositores, perseguições, deportações, mortes. Isso é uma ditadura dura que pode não durar em termos de tempo; ou um regime forte, mas com ligações permanentes à população, como fez o Presidente Sadat, mas muito mais o Presidente Nasser, que conquistou uma imensa popularidade, apesar de se ter tornado um forte opositor da Irmandade Muçulmana.

Depois da revolta de 2011, o Ocidente percebeu o que se estava a passar no Egipto?
De certa forma, percebia-se muito bem que o Governo da Irmandade Muçulmana poderia estar a desembocar numa ditadura do primeiro grau. Muitas das medidas do Presidente Morsi foram no sentido de obter mais e mais e mais poder. Foi o próprio Presidente Morsi que nomeou o general Al-Sisi como chefe das Forças Armadas, foi à procura de um dos generais mais conceituados do exército para chefe das Forças Armadas, embora ele depois se tivesse lançado para chefe de Estado. Seguramente, Sisi não estava sozinho. Tinha junto dele a grande maioria dos oficiais do exército e, portanto, foi relativamente pacífico impor a sua força. As novas manifestações na praça Tahrir também mostraram que havia muitos milhões de egípcios que pretendiam a nova ordem, uma ordem musculada, em que o exército egípcio tinha a última palavra.

Antes de Al-Sisi, houve eleições livres e ganharam os mais radicais, a Irmandade Muçulmana...
A vitória dos irmãos muçulmanos após a queda de Mubarak era previsível, na medida em que era os únicos que estavam organizados no terreno. Também dispunham de uma vasta rede de pessoas que aceitavam bem a sua liderança através das mesquitas, das madraças (escolas religiosas muçulmanas), através da administração religiosa que facilitaram a tarefa. Por outro lado, não se pode considerar que os milhões de egípcios que votaram na Irmandade Muçulmana fossem todos radicais, nem sequer a maioria. Certamente, havia radicais islâmicos, que pode não ser propriamente um radicalismo político, mas daí a dizer-se que foram os radicais que venceram as eleições equivale a dizer que o povo egípcio não sabe distinguir e quer apenas esse radicalismo, que depois as manifestações de apoio ao exército mostraram que não era o caso.

Qual pode ser o papel do Egipto na luta contra o autodenominado Estado Islâmico?
O Estado Islâmico entrou por uma via de radicalismo total, nomeadamente com o autoproclamado califa Abu Bakr al-Baghdadi. A não ser por uma vontade de ir até ao fim da linha, não se percebe muito bem que tenha dado um passo tão errado.

E foi um passo errado porquê?
Porque bastou que se proclamasse califa para ter contra ele a grande maioria dos sunitas: o Egipto, a Arábia Saudita, os diferentes Estados e monarquias do Médio Oriente, que não lhe reconhecem nenhuma autoridade particular, a não ser a violência de que o Estado Islâmico dá provas. Era mais do que previsível que se iam erguer contra este estado de coisas.

Mas teve outras consequências inesperadas. Veja-se o caso que agora surge da nova revolta xiita no Iémen, das milícias houtis do Ansaruallah. Isto significa que os xiitas do norte do Iémen, na fronteira com a Arábia Saudita, pretendem dar uma nova oposição a esse sunismo radical do Estado Islâmico e vão procurar ligações com o Hezbollah, do Líbano; com o Irão e a Síria do Presidente Assad. Estes movimentos xiitas foram encontrar uma vontade de luta contra o radicalismo sunita que é extremamente perigoso até para os próprios regimes sunitas. Veja-se o caso que se passa em Sanaa, a capital do Iémen, em que o palácio presidencial é controlado pelas milícias zaidistas do Ansaruallah.

E qual é o papel do Egipto no meio deste barril de pólvora?
O Egipto tem a vantagem de estar neste momento bastante bem controlado pelo Exército, claro que há sempre a possibilidade de algumas revoltas. Até pelas relações que tem com os Estados Unidos e com a Arábia Saudita, como país sunita, evidentemente, encara com bastante desconfiança um autoproclamado califado do Estado Islâmico. O resultado foi já terem surgido diversos califas por todo o mundo muçulmano. Em breve, “califa” será quase um nome vulgar, a continuar o desrespeito por uma instituição que é política e não religiosa. O califado não tem qualquer implicação de natureza religiosa, tem apenas de força política. E foi o que Abu Bakr al-Baghdadi pretendeu obter.