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Atentado no "Charlie Hebdo"

A viagem alucinante de Chérif Kouachi: da entrega de pizzas à execução de 12 pessoas

08 jan, 2015 • João Carlos Malta

Gostava de miúdas bonitas. Gostava de rap. Formou-se em desporto e entregou pizzas. Até que um encontro numa mesquita tudo mudou. Toda a história do irmão que a justiça francesa deixou escapar.

A viagem alucinante de Chérif Kouachi: da entrega de pizzas à execução de 12 pessoas
Há doze anos, Chérif Kouachi, um dos irmãos suspeitos do atentado no "Charlie Hebdo", era um jovem como muitos outros em França. Estava muito mais interessado em raparigas bonitas e em fumar drogas do que em defender Maomé.

Mas entre 2003 (ano em que Cherif entregava pizzas e sonhava ser um estrela do rap) e quarta-feira, o francês passou directamente de um vulgar desconhecido para a lista dos mais procurados pelas autoridades. Ele e o irmão (Said, de 34 anos) são apontados como suspeitos de matar 12 pessoas em Paris.

Kouachi, de 32 anos, é descrito como um homem pacato pelo advogado que o representou em tribunal, em 2005, por estar evolvido numa célula que se dedicava a enviar jovens para o Iraque. Iniciou então um caminho sem regresso em direcção ao radicalismo. Uma história que começa a ser demasiado familiar em França e em todo o mundo ocidental.

O conhecimento desta passagem de Kouachi pelo sistema de justiça francês, ainda quarta-feita, levantou desde logo questões sobre como é que um ex-presidiário conhecido pelas autoridades pelo passado radical consegue ainda assim levar a cabo um ataque terrorista da dimensão do que aconteceu em Paris.

O órfão perdido
Nascido no este de Paris, este filho de argelinos, que morreram quando ele ainda era uma criança, viveu a infância e adolescência num orfanato no oeste de Rennes. Alguns anos depois, voltou a Paris munido de um diploma de professor de Educação Física, mas acaba a entregar pizzas para sobreviver.

"Ele fazia parte de um grupo de jovens que estavam um pouco perdidos, confusos, mas não era um fanático no sentido estrito da palavra", disse ao "Libération" o ex-advogado Vincent Ollivier.

"Ele não tinha na realidade grandes ideias sobre o Islão e não parecia muito determinado”, acrescentou.

Em 2005, num documentário da France 3, Chérif aparecia no centro de Paris a dançar rap, com calças e t-shirt largas e um chapéu típico do beisebol virado ao contrário.

Apesar de ter registo criminal por vender drogas e pequenos roubos, era descrito com um jovem cujos interesses eram mais virados para os namoros a raparigas bonitas, e uma vida voltada para a música, do que propriamente interessado no Corão. Mas isto foi antes de ele conhecer Farid Benyettou.

E Benyettou tudo mudou
Apenas um ano mais velho do que Chérif, Benyettou era seguidor de uma forma ortodoxa de salafismo (uma interpretação radical do Islão oriunda da Arábia Saudita) e era um mentor para muitos jovens que começavam a frequentar a mesquita da vizinhança do local em que o franco-argelino vivia no nordeste de Paris.

Já com Benyettou ao lado, Chérif Kouachi começa a frequentar aulas de ensinamentos religiosos. Começa a ver vídeos jihadistas e a deixar crescer a barba. Acaba mesmo a testemunhar, durante um julgamento em 2008, que Benyettou o ensinou que os bombistas suicidas podem morrer como mártires.

Chérif disse ainda que estava muito impressionado com os abusos de que os prisioneiros de Abu Grahib, no Iraque, eram alvo por parte dos Estados Unidos da América.

A célula de "Buttes Chaumont" (nome que referencia um parque da vizinhança) liderada por Benyettou, à qual Kouachi pertence, passa a ser responsável pelo envio de dezenas de jovens para combater no Iraque.

Mas enquanto as suas crenças se tornaram mais e mais ferozes, o treino a que estava sujeito mantinha-se amador. O grupo corria algumas vezes a volta do parque para manter a forma física e visionava alguns vídeos sobre como manejar uma Kalashnikov.

Em Janeiro de 2005, Chérif Kouachi foi detido quando se preparava para voar para a Síria sendo que o destino final era o Iraque. No tribunal, Chérif disse estar arrependido.

"À medida que o dia da partida ficava mais perto, eu só queria voltar atrás. Mas fiquei com medo porque arriscava a ser visto como um cobarde", disse ao juiz.

Foi condenado a três anos de cadeia, mas cumpriu apenas metade em duas das mais perigosas prisões francesas. A experiência mudou-o, lembra o advogado: "Não ficou o mesmo".

O seu corpo também se alterou graças a muitas horas de ginásio: o miúdo relativamente franzino tornara-se um homem musculoso.

No mesmo documentário, um assistente social afirma que, durante a detenção, antes do julgamento, Kouachi começou a perceber que foi manipulado por Benyettou. Mas já era tarde.

Caminho sem volta
Depois de ter cumprido a sentença, Chérif foi apanhado outra vez pela polícia em 2010. Era suspeito de fazer parte de um grupo que tentou ajudar à fuga de Smain Ali Belkacem, que em 1995 foi autor de um ataque na rede de transportes de Paris que matou oito pessoas e feriu 120.

Mas a polícia tinha poucas provas conclusivas. Apenas encontrou alguns vídeos com mensagens radicais e a discursos da Al-Qaeda e a sua “pegada” na Internet mostrava que Kouachi tinha procurado informação em sites jihadistas.

Ainda foi assistente num outro processo – um estatuto especial do código de processo penal francês que implica a suspeição de alguma implicação no caso – antes de ser completamente ilibado de todas as suspeitas.

Esta oportunidade perdida dará muito que falar nestes dias que se seguem ao atentado mais sangrento realizado em solo francês. O documento do tribunal que põe fim ao caso, na época, foi publicado pelo “Le Point”. E adensa a dúvida de como tudo foi possível.

"Apesar de confessar uma imersão total no Islão radical, e o seu interesse e defesa de teorias que defendem e legitimam a jihad armada, bem como a sua relação com alguns intervenientes no caso, a investigação preliminar não comprova o envolvimento de Chérif Kouachi," lê-se no documento. Por isso, "as suspeitas não tiveram seguimento".

O resto da história é o que se sabe. Uma quarta-feira sangrenta com 12 mortes e 11 feridos e uma ferida aberta na liberdade de imprensa na Europa.

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