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O Afeganistão muda (lentamente) em cima de uma tábua de skate

28 nov, 2014 • Ricardo Vieira (texto) e Inês Rocha (vídeo)

A organização Skateistan abriu uma "brecha" na ultraconservadora sociedade afegã. Na ressaca do regime talibã, há meninas que estão a conquistar o seu direito a estudar à boleia de um skate. Uma delas, Madina, tornou-se uma estrela.

O Afeganistão muda (lentamente) em cima de uma tábua de skate
A organização Skateistan abriu uma “brecha“ na ultraconservadora sociedade afegã. Na ressaca do regime talibã, há meninas que estão a conquistar o seu direito a estudar à boleia de um skate. Uma delas, Madina, tornou-se uma estrela.
Os talibãs proíbem as raparigas de ir à escola e de jogar futebol. Os radicais ainda controlam partes do Afeganistão, mas não mandam no Skateistan. Tal como não manda a mentalidade que ainda rege o país.

Esta organização não-governamental (ONG) aproveitou uma "brecha" na ultraconservadora sociedade afegã e está a mudar a vida de 800 crianças através do desporto e da educação.

"O que há de único no Afeganistão é que as raparigas também se mostraram interessadas no skate e é-lhes permitido andar", destaca Alix Buck, skater e gestora de desenvolvimento da Skateistan.

Muitas jovens "não podiam praticar outros desportos, mas os pais não tinham nenhum problema em relação ao skate por ser um desporto desconhecido no país", explica Alix, em conversa com a Renascença via Skype, a partir de Berlim, a sede da Skateistan.

"Descobrimos esta brecha que nos permitiu envolver as raparigas afegãs no desporto, apesar de não poderem, por exemplo, lançar papagaios ou jogar futebol", sublinha.


Fotos: Skateistan

Actualmente, cerca de 40% dos alunos da Skateistan, que tem instalações em Cabul e Mazar-e-Sharif, são raparigas. "Para nós é muito importante dar prioridade à participação das raparigas. Especialmente por causa da brecha especial que conseguimos encontrar, elas podem participar", diz. "Acredito que elas têm mais a ganhar com os programas de desporto e educação."

Madina, a menina que se tornou símbolo
Madina nasceu há 16 anos num dos países mais pobres do mundo. No Afeganistão, a taxa de trabalho infantil ronda os 30% e só uma em cada dez mulheres sabe ler e escrever.

Passou parte da infância longe da escola. Vendia bugigangas nas caóticas ruas de Cabul para ajudar a família a sobreviver num país em estado de guerra permanente. Até ao dia em que se cruzou com a Skateistan: transformou-se num símbolo para as outras crianças e mulheres afegãs, que viram os seus direitos ser rasgados durante os anos do obscuro regime talibã.

Agora, estuda e partilha ensinamentos com outros meninos na Skateistan. Discursa no parlamento de Cabul, participa em conferências TEDx e este ano foi à Colômbia representar o seu país no Fórum Urbano Mundial da ONU.

"Madina começou como estudante e agora faz parte do nosso quadro de pessoal, como instrutora de skate e também ensina as crianças na sala de aula. Ela é muito activa. Temos cursos de produção audiovisual em que ela participa, está a tirar muitas fotografias, a aprender edição vídeo. Essas são as coisas que gosta de fazer", conta Alix.

Um australiano em Cabul
Um australiano a andar de skate com os amigos nas ruas de Cabul. Foi assim que começou a história da Skateistan, em 2007.



Oliver Percovich foi visitar a namorada, que trabalhava como investigadora no Afeganistão, e levou as tábuas de skate na bagagem.

As sessões de "freestyle" em Cabul chamavam a atenção dos mais jovens. Percovich "descobriu que, como em todo o lado, as crianças afegãs ficavam muito entusiasmadas e todas queriam agarrar na prancha e andar de skate", conta Alix Buck.

Foi assim que nasceu a ideia de criar uma organização no Afeganistão. A ideia passou à realidade, ganhou dimensão e já saltou fronteiras para o Cambodja e África do Sul.

Actualmente, a Skateistan apoia cerca de mil jovens todas as semanas: cerca de 800 no Afeganistão e 150 no Cambodja. Na África do Sul, onde o projecto arrancou este ano, há cerca de 50 crianças envolvidas em actividades desportivas e escolares.

Missão Skateistan
A Skateistan aproveita o skate para "ligar as crianças a oportunidades educativas" num dos países mais pobres do mundo, refere Alix Buck.

A organização não-governamental tem três programas para crianças dos cinco aos 18 anos. O principal chama-se "Skate and Create" – a cada hora de skate segue-se uma hora na sala de aula. O método de ensino é criativo e virado para as artes, cobrindo "diferentes currículos que podem ser sobre higiene, ambiente e outros temas ao longo do ano".



O "Regresso à Escola" é um programa de "aprendizagem acelerada para que as crianças que deixaram a escola possam voltar. Nesse programa fazem três níveis num ano e, no fim, estarão em condições para fazer o exame de admissão ao sistema público".

O terceiro programa chama-se "Liderança Jovem". Quer "proporcionar mais oportunidades aos estudantes à medida que ficam mais velhos, aos alunos mais promissores, aos mais interessados. Eles voluntariam-se como instrutores e também participam em ‘workshops’ de skate, produção audiovisual, escrita e coisas diferentes".

A organização, que conta com o financiamento de vários governos europeus e empresas, construiu instalações próprias em Cabul e Mazar-e-Sharif, no Afeganistão. Alix Buck diz que são uma espécie de "porto seguro" onde as raparigas podem ter "um espaço privado para andar de skate, com instrutoras do sexo feminino".

Esta canadiana já esteve no Cambodja e, actualmente, trabalha nos escritórios da Skateistan, em Berlim. Também passou pelo Afeganistão, um "país lindo, montanhas incríveis" e com o povo mais "agradável e hospitaleiro" que já conheceu. Um "retrato" que não costuma aparecer nas notícias, realça.

Alix não arrisca dizer que o skate vai mudar o mundo. Só pode falar por si: "O skate significa muito na minha vida. Ajudou-me a ser uma pessoa confiante enquanto crescia, a manter-me longe de problemas quando era criança".

Deseja o mesmo para os miúdos da Skateistan e que a nova geração possa inspirar os mais velhos a seguir o símbolo desta organização não-governamental: um skater a partir uma metralhadora Kalashnikov.