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Reportagem

Foi a portuguesíssima Adega Leone que serviu Lula ao país

29 set, 2014 • João Almeida Moreira, em São Paulo

Há vários pratos (e um restaurante) portugueses na ascensão política de Lula da Silva. Fomos à Adega Leone, nas vésperas das eleições que podem tirar o PT do poder.

Foi a portuguesíssima Adega Leone que serviu Lula ao país
"O Lula comeu tibornada de bacalhau com batatas a murro e repetiu as batatas...". Estamos na Adega Leone, em Ribeirão Preto, e este não é um mero restaurante português no estado de São Paulo: este restaurante faz parte da história da política brasileira.

A Adega Leone entrou para o dicionário informal da política brasileira, da mesma maneira que a rodagem do carro de Cavaco Silva no congresso da Figueira da Foz entrou no da portuguesa.

Foi na Leone que Lula enfiou o socialismo na gaveta (para continuar a viajar por expressões da história da política lusa).

"A Adega Leone vai bem, obrigado"
A Adega Leone, um dos principais restaurantes portugueses do Brasil, está na origem da ascensão de Lula à presidência, numa longínqua segunda-feira à tarde de Maio de 2002.

Nesse restaurante, a cúpula do Partido dos Trabalhadores (Lula, Antonio Palocci, José Dirceu, braço direito de Lula e hoje na prisão por causa do "Mensalão", José Genoíno, presidente do PT à época, também a cumprir pena pelo mesmo motivo, Duda Mendonça, 'marqueteiro' oficial de campanha, Guido Mantega, hoje ministro da Fazenda) sentou-se a redigir a "Carta ao Povo Brasileiro", um documento (PDF) onde o outrora partido revolucionário guinava à direita para tentar seduzir a classe empresarial.

Todos sabemos onde estão hoje Lula, reserva moral do PT, e Dilma, sem a reeleição assegurada (os brasileiros decidem no próximo domingo), e, para mal dos pecados deles, onde estão Dirceu e Genoíno. E a Adega Leone, como vai?

"A Adega Leone vai bem, obrigado", diz Leone Rufino. Apesar do nome "italianado" é um lusitaníssimo lisboeta criado no Porto – como o sotaque, quase 40 anos depois da chegada ao Brasil, denuncia perfeitamente.

Ao lado da mulher, a luso-angolana Anabela, cozinheira ilustre, dirige um dos quatro melhores restaurantes portugueses do Brasil, segundo o Guia Quatro Rodas, uma espécie de Michelin à brasileira.

Nove comensais, zero "garçons"
Conta o próprio Leone: "O tal célebre almoço na política brasileira foi combinado entre mim e o Palocci, que era meu vizinho na cidade. Ele veio ter comigo e perguntou-me: 'Ó senhor Leone, posso reservar o restaurante segunda-feira, que é a sua folga, para mim e para o Lula, porque ele adora bacalhau?'. Eu disse que sim, está claro".

"Chegaram nove comensais, mais uns quantos seguranças que ficaram na mesa ao lado, os telefones do restaurante, a pedido deles, foram desligados e os ‘garçons’ todos dispensados, fui eu quem os serviu", conta Leone.

Para além da tibornada que sossegou o estômago de Lula, "ainda comeram um cabrito à Fornos de Algodres, beberam Cartuxa tinto e fumaram charutos".

"Lá pelo meio", conta, "redigiram a tal 'Carta ao Povo Brasileiro', o 'marqueteiro' Duda Mendonça levantou-se e deu então umas directrizes".

"A campanha ainda nem começara", escreve Antonio Palocci (o estratega da área económica do PT do início do lulismo ao início da era Dilma) no seu livro de memórias "Sobre Cigarras e Formigas", "mas precisávamos de combinar uma estratégia e por isso escolhi o Restaurante Adega Leone, em Ribeirão Preto, para a começarmos".

A tibornada (ainda) em alta, o PT em baixa
Doze anos depois, o PT está mais perto de abandonar o poder do que jamais esteve, com o fenómeno Marina Silva a atrapalhar o plano de Lula e Dilma de cumprir, pelo menos, quatro legislaturas como inquilinos do Palácio do Planalto em Brasília.

Palocci, entretanto demitido pela amiga Dilma do cargo de ministro da Casa Civil no primeiro ano de governo da presidente por suspeitas de enriquecimento ilícito, ainda aparece na Adega do Leone de vez em quando. Lula nunca mais lá foi.

A tibornada de bacalhau continua a ser um dos ex-libris de um estabelecimento todo forrado a azulejos e a cardápios de restaurantes portugueses colados às paredes e ao tecto. Amália, Lucília do Carmo e Carlos Ramos são a banda sonora "non stop" da casa.

Se Outubro de 2014 pode ficar como a data em que o lulismo no Brasil acabou, aquela segunda-feira de Maio de 2002 ficou na história como o momento em que o lulismo começou. Foi a Adega Leone que serviu Lula ao país.