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Criador da Wikipedia

"É um direito humano fundamental poder falar com privacidade"

27 jan, 2014 • Pedro Rios

Vigilância aos cidadãos feita por países como os Estados Unidos mina a "confiança de que precisamos para conduzir as nossas vidas online", diz Jimmy Wales, em entrevista à Renascença.

"É um direito humano fundamental poder falar com privacidade"
A vigilância aos cidadãos feita por países como os Estados Unidos mina a "confiança de que precisamos para conduzir as nossas vidas online", diz Jimmy Wales, em entrevista à Renascença. Voz autorizada nas discussões sobre a vida digital, defende que os EUA e outros países ocidentais não podem vigiar os seus cidadãos sem que eles sejam suspeitos da prática de crimes. O co-fundador da Wikipedia participa na conferência "Porto Business School Leadership Grand Conference", na Casa da Música.

Encontramo-lo nas novas instalações da Porto Business School, a "escola de negócios da Universidade do Porto", na Senhora da Hora, "freguesia e cidade  portuguesa do concelho de Matosinhos". As citações provêm da Wikipedia, a maior enciclopédia da internet, que Jimmy Wales co-fundou em 2001. No início do milénio, Wales não podia adivinhar que a sua invenção torna-se-ia uma instituição da vida contemporânea. Voz autorizada nas discussões sobre a vida digital, defende que os Estados Unidos e outros países ocidentais não podem vigiar os seus cidadãos sem que eles sejam suspeitos da prática de crimes. Jimmy Wales participa esta segunda-feira na conferência "Porto Business School Leadership Grand Conference", na Casa da Música.

Há 13 anos, quando lançaram a Wikipedia, podiam adivinhar que ela tornar-se-ia o quinto site mais visto da internet?
Fui sempre muito optimista quanto à Wikipedia, mas nunca adivinhei que seria esta infra-estrutura global que é hoje. Ainda fico espantado e entusiasmado.

Olhando para trás, percebe por que é que isto aconteceu? Não faltam boas ideias na Net que ficam pelo caminho.
Acho que a principal razão é o facto de a Wikipedia preencher uma certa necessidade no mundo. As pessoas querem informação básica sobre o mundo, não querem publicidade e querem ler algo neutral e de alta qualidade. Também importante é a expressão da paixão da comunidade: as pessoas desejam aprender novas coisas, querem partilhar, querem discutir e construir.

Em 2013, o mundo escandalizou-se com os sistemas de vigilância em massa dos cidadãos em países democráticos como os Estados Unidos. Como perspectiva os próximos tempos?
É muito saudável termos este debate agora. O principal problema é que havia rumores, mas esta vigilância acontecia em secretismo, sem um debate a sério. Nos Estados Unidos, é quase de certeza inconstitucional e ilegal. Houve mentiras ditas no Congresso. As coisas vão definitivamente mudar. Acho que nas próximas eleições vai ser um assunto importante.

Tim Berners-Lee, o fundador da World Wide Web, diz que a vigilância em massa está a minar a confiança das pessoas na Net.
Sim, está a minar a confiança de que precisamos para conduzir as nossas vidas online. É interessante que muitas partes do governo [norte-americano] tenham feito pressão durante muito tempo para haver maior segurança, mais encriptação. Mas, ao mesmo tempo, a NSA pediu menos encriptação, o que permitiu a gangues criminosos fazer ataques informáticos e roubar milhões de cartões de crédito. A segurança é importante não apenas para o nosso cartão de crédito ou para falarmos com o nosso banco, mas também para falar com quem amamos, com os nossos amigos. É um direito humano fundamental poder falar com privacidade. Não serve o bem comum fazer vigilância em massa. Podemos discutir os detalhes: não tenho problemas que se espiem pessoas de quem se desconfie – foi a isso que chegamos nas democracias ocidentais. Toda a gente deve ser deixada em paz, mas, se for suspeito, a polícia pode investigar. Mas é muito perigoso ter esta vigilância em massa. Pode cair nas mãos erradas, no partido político errado, que pode usá-la para atacar os adversários e manter o poder.

A internet é vista como um dos factores que levaram à Primavera Árabe. A Wikimedia Foundation tem um projecto, Wikipedia Zero, para aumentar o uso da enciclopédia nos países em desenvolvimento, muitos deles com défices democráticos. O "mau exemplo" dos Estados Unidos, a espiar os seus cidadãos, põe em causa estes esforços?
Absolutamente. Considero-me um embaixador informal dos valores da liberdade de expressão, da privacidade e da abertura. Reuni-me com ministros na China, por exemplo, para explicar por que é que não devem censurar a Wikipedia, nem espiar tudo o que os seus cidadãos fazem. Ora, isto é completamente posto em causa se eles podem apontar para os Estados Unidos e o Reino Unido e dizer: "Vocês fazem o mesmo". Torna-se muito difícil defender os direitos humanos noutros locais se nós mesmos não temos os padrões mais elevados.

Como se o mundo ficasse sem referências democráticas?
No mundo inteiro, as pessoas podem discordar de um ou outro aspecto da política americana, como a guerra no Iraque, mas as pessoas têm uma ideia positiva dos Estados Unidos, da Constituição, de um governo que não nos dá medo de viver… Esses velhos valores americanos são vistos como algo que fez bem ao mundo. Minamos isto se tivermos uma política externa, mas minamos de uma maneira ainda mais profunda quando fazemos actividades profundamente contrárias a esses valores fundamentais. Fica muito difícil fixar um exemplo moral.

Em que ponto está o Wikipedia Zero?
Estou muito entusiasmado com Wikipedia Zero. É um programa em que negociamos com operadoras de comunicações móveis acesso gratuito à Wikipedia através do telemóvel. Há milhares de milhões de pessoas que, nos próximos três, quatro anos, vão poder aceder a um smartphone, mas receiam gastar muito dinheiro por aceder à internet através do telemóvel. É óptimo que as operadoras ofereçam a Wikipedia gratuitamente porque afecta a vida das pessoas.

Já há resultados? A Wikipedia está menos ocidental?
Os principais resultados é que agora chegamos a 400 milhões de pessoas, teoricamente - ainda nem todos têm smartphones, mas este é o número de clientes dessas operadoras. As visitas à Wikipedia explodiram nestes países.

A Wikipedia é o maior exemplo da Web 2.0, a internet que é construída pelos utilizadores?
Éramos definitivamente Web 2.0 antes de alguém pensar nesse termo. A razão pela qual a Web 2.0 descolou, quando o Tim O'Reilly cunhou o termo, foi por ter identificado algo que já existia há algum tempo. "Ah, é verdade, temos todas estas coisas como o Flickr, isto é Web 2.0.” Imediatamente, alguém perguntou o que seria a Web 3.0. Houve quem dissesse que seria a Web semântica. Provavelmente são as apps, o mundo das apps no teu telefone. Mas não sei. 

Talvez já lá tenhamos chegado.
Talvez já lá tenhamos chegado e ainda ninguém encontrou o termo. 

Vai falar no Porto para uma plateia de empresários e estudantes de uma escola de negócios. A filosofia de trabalho colaborativo, que é a força da Wikipedia, pode estender-se a outras áreas?
Definitivamente. Estamos num mundo cada vez mais participativo. As pessoas envolvem-se mais nas coisas directamente. Hoje o boca-a-boca é mais forte do que alguma vez foi. Nos negócios, não podemos assumir que publicidade em massa pode colmatar as falhas de um produto. Se tens um produto que não é assim tão bom, não podes corrigir isso gastando mais dinheiro em publicidade porque os consumidores falam entre si, publicam críticas na internet. Isto é verdade de muitas outras formas.

Defende a liberdade na internet, mas é diferente de uma figura como Julian Assange, contestatário do sistema capitalista. Como vê o estado do capitalismo no mundo, depois da crise financeira?
O valor fundamental do capitalismo é a ideia de que se tiveres um negócio honesto e um bom produto por um bom preço fazes dinheiro. Se tens uma boa invenção, uma inovação que transforma a vida das pessoas fazes dinheiro. Isso é bom. Queremos que grandes empresas sejam geridas por pessoas que queiram produzir bons produtos por bons preços. As experiências com o comunismo do último século mostram que a alternativa é brutal, totalitária e que é absolutamente não funcional combinar o uso do poder de negócios e o uso da força. É essa a diferença entre os dois poderes: o governo pode prender-te e usar força contra ti. Esses poderes devem estar separados.
Mas há sítios onde estamos a misturar as duas coisas. Uma delas é – e não para o bem do povo – na esfera bancária. Quando os bancos começaram a ficar em sarilhos, receberam dinheiro dos contribuintes, que não o deram voluntariamente, para se salvarem e pagar bónus enormes [aos gestores]. Isso não é capitalismo, isso não é a abordagem empreendedora em que começaste um negócio, ele não funcionou, logo faliste. As mesmas pessoas que dirigiam os bancos e pegaram no dinheiro dos impostos ainda gerem os bancos, o que significa que vão fazer a mesma coisa. É completamente ridículo. O capitalismo não é só algo que faz dinheiro: é algo que faz dinheiro sendo um negócio e não saqueando o erário público.