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O coração também emigra

25 mar, 2013 • Joana Carvalho Fernandes, em França

Mais de um milhão de portugueses emigraram para França entre 1960 e 1982. Faziam planos de ir por uns anos, mas o salto estendeu-se no tempo para quase todos.

O coração também emigra

Abílio e Irene Laceiras, de 69 e 70 anos, vivem em Villeparisi, nos arredores leste de Paris. Ela é natural de Lisboa, ele de Silvares, no Fundão. Chegaram a França a salto, há mais de 40 anos. Continuam a gostar muito de Portugal - falam português um com o outro e vivem numa casa à portuguesa, que vai do vinho que enche os copos à mesa até às loiças que decoram a cozinha -, mas têm razões - essencialmente quatro, explica Irene - para não regressar: "Gabriel, Hugo, Thomas e Sarah". Os netos. Quatro netos.

"Nós nunca fomos muito ambiciosos em termos de dinheiro. Tentámos sempre viver normalmente. E já que a gente não tinha dinheiro para dar aos filhos, apoia de outra maneira, a tomar conta dos netos", explica Abílio.

Irene diz também que "nunca" gostou de França. Ainda não gosta. Mas diz também que não lhe apetece ir embora: "Estão aqui os filhos, os netos, para onde é que a gente vai agora?". E Abílio acrescenta: "Ninguém que foi obrigado a sair de Portugal para aqui pode gostar de França. Porque se se encontra aqui é de maneira forçada".

O casal quer continuar em França por razões de coração, mas conhece quem tenha outras razões para não ir para Portugal de vez. Abílio conta que "o facto de o sistema social francês ser diferente, e mais propício a que as pessoas tenham acesso aos tratamentos, implica que muita gente que vai para Portugal mantenha em França um domicílio para poder vir aqui fazer os tratamentos".

Às razões de saúde, diz ainda, junta-se alguma vergonha, na sombra do mito do emigrante bem-sucedido: "Para a maioria das pessoas, o facto de ser emigrante é sinónimo de ter dinheiro. E essa é uma das razões pelas quais muitos emigrantes não querem regressar a Portugal. Porque enveredaram por outro tipo de vida, e por causa do sarcasmo dos amigos e da família não vão".

"Um país onde a saúde, a justiça e a educação não funcionam não me convém"
Entre 1960 e 1982, mais de um milhão de portugueses emigraram para França, a maioria de forma clandestina. Uns fugiam de um Portugal em ditadura, outros disso e também da miséria. Faziam planos de ir por uns anos, esperar pela liberdade – resistir aí à ditadura –, juntar dinheiro para construir uma casa e regressar. Para quase todos, o salto estendeu-se no tempo, além dos planos.

É o caso de José da Silva Rey, de 59 anos, que vive em Clamart, na periferia sudoeste de Paris. Nasceu na região de Lafões, no distrito de Viseu. Chegou a França em Maio de 1969. Vinha contornar o serviço militar obrigatório e amealhar algum dinheiro, para poder regressar e viver melhor.

O plano inicial era simples: "Vinha uns anos, arranjava umas coroas, construía uma casa e depois ia trabalhar para Portugal". E regressou, mas apenas para casar. Casou com uma portuguesa e voltou para França. Vinha, de novo, apenas por uns tempos: "Era até acabar a casa que tínhamos começado. Mas depois acabou-se a casa e os filhos andavam aqui na escola, e a casa estava lá e os filhos estavam aqui. Portanto, fomos ficando por aqui e a casa lá está".

José da Silva Rey é técnico superior de manutenção num laboratório farmacêutico. Faz descontos desde 1970 e, por isso, pode reformar-se a partir do final deste ano. Como Abílio e Irene Laceiras, tem "uma casa à portuguesa, com o garrafão do vinho, o bacalhau, o galo de Barcelos". José vai diversas vezes por ano a Portugal, em vez de uma já tem duas casas, o filho e a filha são adultos, ainda não tem netos, mas, mesmo assim, não faz planos para um regresso definitivo.

"Enquanto tivermos pernas, vamos passar o bom tempo em Portugal e o resto do tempo vamos passá-lo aqui. Quando eu lá estou, ao fim de um certo tempo falta-me a Torre Eiffel, faltam-me os meus amigos daqui, faltam-me os meus colegas de serviço. Falta-me lá toda esta história que tenho aqui, que não posso transportar e que nem tem interesse, porque a história lá é outra e também é muito agradável", explica.

Mas não é só o coração dividido que impede José de passar toda a reforma em Portugal. "Um país onde a saúde, a justiça e a educação não funcionam não me convém."

"Penso que a minha morada definitiva será sempre cá"
Lurdes Fernandes, de 46 anos, é a única porteira da rua Gauthey, no XVII bairro de Paris, a norte da capital francesa. É natural de Vouzela, no distrito de Viseu. Emigrou para França com 15 anos. Regressou a Portugal dois anos depois, mas tornou a sair. O marido, Fausto Fernandes, juntou-se a ela. Vieram os filhos, foram-se adiando os planos.

"Eu quis sempre ficar cá o tempo que pudesse, mas o Fausto vinha com aquela ideia de estar aí seis, sete anos, o tempo de construir uma casa, e depois, quando os nossos filhos estivessem em idade de ir para a escola primária, regressar a Portugal, arranjar um trabalho e viver lá. Era isso que estava mais ou menos combinado. Só que o tempo foi passando, começámos a ver que a vida estava a mudar. Quando íamos de férias, as pessoas diziam 'não caiam na asneira de vir para cá, que isto aqui não está muito fácil, há pouco trabalho'. Os garotos começaram a ir para a escola e foi passando."

Lurdes Fernandes está a mais de 15 anos da reforma. Vai a Portugal com muita regularidade, mas também não pensa ir de vez quando deixar de trabalhar: "Claro que quando for para a reforma vou para lá dois, três meses, e volto para aqui dois, três meses, mas penso que a minha morada definitiva será sempre cá". Porque comprou uma casa em Paris, porque o mais certo é que os três filhos fiquem em França e porque há preocupações e medos que a ideia da velhice traz.

"O que não me atrai em Portugal é a questão da saúde. Os acessos à saúde lá são difíceis, em comparação com aqui. A minha casa está numa aldeia, aquilo é calminho, mas depois, se há um problema de saúde, temos que ir a 30 quilómetros da nossa terra. Se há uma urgência… Isso mete-me medo."

A reforma que Lurdes Fernandes planeia é, como a de Abílio e Irene Laceiras, e como a de José da Silva Rey, uma reforma à imagem da vida que viveram: a reforma de um coração dividido, com um pé em França e outro em Portugal.