Emissão Renascença | Ouvir Online

Reportagem

Conheça a história do trompetista a quem Villas-Boas dedicou a vitória em Sevilha

18 fev, 2011 • Maria João Cunha com Letícia Amorim

No final da partida de ontem, em que o Porto bateu o Sevilha por 2-1, o treinador dos dragões dedicou a vitória a Emídio Rafael, jogador que está lesionado, e "ao Lourenço trompetista". Em Junho do ano passado, e a propósito da moda das vuvuzelas do Mundial da África do Sul, a Renascença foi conhecer Lourenço, o trompetista a quem Villas-Boas dedicou a vitória de Sevilha. Relembre a história de um homem que ofereceu aos relvados a subtileza dos sons.

Conheça a história do trompetista a quem Villas-Boas dedicou a vitória em Sevilha
Lourenço é o trompetista que habita o estádio do Futebol Clube do Porto. Nos grandes jogos, lá está o som do seu velho instrumento, irrompendo, a espaços, entre os cânticos e o quase-silêncio. Convidámos este experimentado animador de estádios de futebol a experimentar o "instrumento" deste mundial... LEIA A REPORTAGEM
"Então é isto…". A expressão de Lourenço não tem nada de espanto como não tem de desilusão. Chegamos ao local onde vamos filmar a reportagem, pousamos o material numa mesa e ele pega na corneta de plástico laranja pela primeira vez. Faz pressão com os lábios e expele ar. Um ronco grave. Depois um agudo. "Afinal, isto dá duas notas!". E Lourenço repete os roncos. Uma pausa, de novo a pressão no rosto e nos lábios, à procura de algo mais… E a conclusão: "É só isto".

Depois do primeiro teste e da verificação, Lourenço, trompetista de meio século, passa rapidamente ao campo da Física. Tece algumas explicações sobre a vibração do ar, a pressão, a relação da intensidade com a frequência do som. E simplifica: "isto faz lembrar as cornetas militares". De facto, as semelhanças são expressivas: um tubo, com um bucal numa ponta e uma campânula na terminação. A fazer lembrar a forma de um corno, precisamente a origem mais remota dos instrumentos da família dos metais (aerofones), em que o ar não precisa de cordas ou de membranas para vibrar. "No trompete, a diferença está nos pistões", que permitem alongar ou encurtar o tubo, "por isso consigo produzir notas diferentes e não apenas uma oitava, como na vuvuzela". Lourenço continua a explicação: "Se o tubo da vuvuzela fosse mais curto, teria sons mais agudos e, se tivesse furos, conseguia produzir notas diferentes". Mas nem por isso mais agradáveis.

A magia de um jogo
Lourenço é o trompetista que habita o estádio do Futebol Clube do Porto. Nos grandes jogos, lá está o som do seu trompete, irrompendo, a espaços, entre os cânticos ou o quase-silêncio. Tem, por isso, certa propriedade para falar do espectáculo que vai fora das quatro linhas, profissional que é do apoio a um clube, experimentado animador de jogos de futebol. "Sou totalmente contra as vuvuzelas", diz. Para prosseguir: "O ruído de fundo é muito desagradável e perturbador. Apesar de isolado, o instrumento poder ter alguma graça. Em conjunto, assemelha-se a muitos enxames de abelhas e torna o jogo impossível de ver". Ou de ouvir. Lourenço já desliga o som da televisão, tal é a intolerância.

Lourenço lembra a lógica do espectador que é também actor neste tipo de espectáculo. Como os metais que acompanham a selecção holandesa ou o bombo do "Manolo de Valência", que ecoa sempre que joga a "Fúria Vermelha". São os adeptos que animam os jogos. São conhecidos e reconhecidos elementos da equipa que apoiam.

"Ainda há uns dias, alguns jogadores que foram campeões europeus, como o Jaime Magalhães, o Frasco, o Fernando Gomes e outros, me diziam: ‘Quando a gente ouvia o trompete, já sabia que estava lá a claque do Porto, com o Lourenço Trompetista. Às vezes, até estávamos um pouco em baixo, mas ouvíamos o trompete e a malta andava para a frente’". E Lourenço sorri, na perspectiva do reconhecimento. O mesmo não dirá hoje Ronaldo dos tocadores de vuvuzelas.

Cristiano Ronaldo é "endeusado"
"O Queiroz é um indivíduo com quem simpatizo. Mas tem parte da crítica contra si, porque não é anti-portista, dá-se muito bem com o Pinto da Costa, vem muitas vezes ao Estádio do Dragão e há muita gente em Lisboa que não gosta dele", assevera Lourenço.

E de Queiroz a Scolari vai uma grande distância. "Em princípio, sou defensor do Carlos Queiroz, mas não gostava nem um bocadinho do Scolari", responde, justificando de seguida: "Scolari era ‘anti-Porto’ e por causa da vergonha que foi a sua opção de não convocar o Vítor Baía para o Euro 2004. Deu-se ao luxo de não ter vindo sequer ao Dragão ver um jogo", recorda. E continua crítico para o brasileiro: "Podia perfeitamente ter ganho o Europeu, Portugal perdeu por causa dele. Não foi um ganhador, mas ganhou muito dinheiro em Portugal e a nível desportivo não trouxe nada", remata.

O "trompetista das Antas", como ainda lhe chamam diz que há um "endeusamento" da figura de Cristiano Ronaldo. "Na nossa selecção foi o Eusébio, depois foi o Figo, o Rui Costa e agora é o Ronaldo. Mas o desporto é colectivo", dribla, antes de chutar: "Até foram os jogadores do Porto que garantiram o apuramento, mas disso ninguém fala".

Das romarias aos "futebóis"
Filho de pai fadista, Lourenço nunca foi à bola com a "canção da desgraça", um género que o etnógrafo Armando Leça (citação do próprio) dizia só se dar bem "nas vielas escuras da Alfama e da Mouraria", lá na capital. Identificava-se mais com outros ritmos – como o "Vira" e o "Malhão" –, os que estão no ADN de uma parte do povo português que é naturalmente alegre.

O trompete chegou-lhe às mãos aos 15 anos. Começou na banda da Foz do Porto. Pelo caminho, experimentou muitas mais, tocou em conjuntos de baile, entrou no Conservatório já depois de virar os 40 e "com quatro filhos para sustentar". E calcorreou toda e qualquer romaria que se fizesse mais a Norte.

Foi num "célebre" Porto-Benfica, no Pavilhão Américo Sá, já Pinto da Costa presidia ao Futebol Clube do Porto – corria o ano de 1983. "O pavilhão levava cinco ou seis mil pessoas, estavam dez mil, foi uma coisa louca", recorda, "nunca o Porto tinha ganho um título de hóquei em patins".

Logo um elemento da claque dos Dragões Azuis, entretanto extinta, o convida a fazer parte da falange de apoio. É assim que Lourenço começa a acompanhar o FCP para todo o lado. Nunca mais deixou de tocar em competições e em festas do clube. Nem consegue dizer quantas.

Hoje já não anda com as claques, não tem paciência, mas continua a ter lugar cativo no Dragão. Bem por cima da claque do adversário, um lugar que escolheu "para provocar um bocadinho". E confraternizar. No repertório tem sempre à mão um "Bailinho da Madeira" para os insulares, ou um "God Save the Queen" para os adeptos britânicos. "Só com os de Lisboa é mais complicado", diz, por causa das eternas rivalidades. E entre risos recorda o momento de inspiração em que lhe ocorreu dedicar-lhes a marcha fúnebre de Chopin.