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Sinistralidade Rodoviária

“Aumento de mortes na estrada não é surpresa”

30 ago, 2015 • José Bastos

De 1 de Janeiro a 15 de Agosto, registaram-se 74 mil acidentes, mais 4.400 que no mesmo período de 2014. O número de mortes aumentou 11,5%. Quatro especialistas discutiram o tema no programa "Conversas Cruzadas".

“Aumento de mortes na estrada não é surpresa”

A tendência de diminuição de mortos na estrada da última década está a ser contrariada pelos últimos dados da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, ANSR. São números em contraciclo: desde 2005 apenas em 2007 e 2010 o número aumentou 0,5%, tendo diminuído em todos os outros anos.

De 1 de Janeiro a 15 de agosto registaram-se 74 mil acidentes, mais 4400 que no mesmo período de 2014 e as mortes aumentaram 11,5%. Os especialistas coincidem em que é ainda cedo para uma análise aprofundada dos números, mas não mostram estranheza.

“Não é uma surpresa esta inversão da tendência de descida de mortes. Porquê? Nós já tínhamos avisado, desde 2012, várias vezes, que o único item que, felizmente, ainda tinha continuado a baixar era o número de mortes”, afirma José Miguel Trigoso,  presidente da Prevenção Rodoviária Portuguesa (PRP).

“O número de feridos e o número de acidentes já não estava em queda. Se comparado com o volume de tráfego em circulação a descida do número de mortos tem vindo, já há anos, a ser reduzida entrando num patamar que prenunciava a inversão da tendência”, defende o responsável da PRP, nesta emissão especial de Conversas Cruzadas.
Manuel João Ramos, da ONG Associação de Cidadãos Auto Mobilizados, ACA-M, também não mostra espanto.

“Não há qualquer surpresa. Já em 2010, a ACA-M tinha chamado a atenção para o facto de a crise vir a resultar em elementos de alteração da tendência”, sustenta o antropólogo.

“De facto, a crise levou a uma redução das velocidades, da circulação, mas, como continuamos a não ter uma política efectiva de segurança rodoviária – são mais estratégias no papel que outra coisa – qualquer aliviar da crise, mesmo em perspectiva psicológica, ia levar a um aumento dos comportamentos de risco nas estradas”, prossegue Manuel João Ramos.

Manuel João Ramos: “Espaço urbano é agressor de peões”
Os dados actuais estão, ainda assim, longe dos números catastróficos do passado. No final dos anos 80 chegou a haver mais de 2500 mortos por ano nas estradas, média de 7 por dia. Este número teve o seu valor mais baixo em 2014: 482 mortos.

Manuel João Ramos alerta para enviesamentos que podem constituir leituras parciais e incompletas das cifras.

“O balanço é positivo no sentido em que há menos mortos, mas muito do abrandar da sinistralidade em Portugal deveu-se à redução da sinistralidade inter-urbana. Enchemos o território de auto-estradas e Scuts que são muito mais seguras”, diz.

“Mas um dos impactos é que, por exemplo, temos um espaço urbano agressor dos peões. Neste momento, não há dinheiro no país para fazer a requalificação do espaço urbano no sentido de uma melhoria do uso de outros transportes que não apenas o automóvel”, defende Manuel João Ramos.

José Miguel Trigoso regressa aos números de 2015. “O que aparece claramente como agravamento da sinistralidade na análise detalhada dos números dos três primeiros meses são mortes dentro de localidades a decorrer do uso de bicicletas, veículos de duas rodas a motor”, afirma.

“Há um problema na relação do homem e o universo motorizado no espaço urbano, mas, atenção, não são só os peões. É impressionante o número de pessoas que morrem em resultado de despistes ou colisões violentas dentro de localidades”, refere Trigoso.

“Causas? Há duas explicações. No interior das localidades o projecto de organização do trânsito não é o adequado à convivência pacífica de todo o tipo de utentes. Isso conduz à outra explicação: a prática de velocidades exageradas dentro das localidades”, indica o presidente da PRP.

“Não sou um fundamentalista face à velocidade, nunca fui, mas alerto para as localidades. Há a necessidade de se ser rigoroso em todas as vias em que possam circular peões ou em que haja cruzamentos a noventa graus. Aí a velocidade não pode nunca ser superior a 50 Km/h. Um pequeno excesso para os 60 ou 70km/h é gravíssimo”, alerta José Miguel Trigoso.

“Porque é que as pessoas não dão conta disto? Porque não são ensinadas. Nos exames de condução não são inquiridas sobre a relação entre as distâncias de visibilidade e a velocidade que deve ser praticada face a coeficientes de atrito e outras variáveis. Não são questionadas no exame. Como não o são, as escolas de condução acabam por não ensinar nada. As pessoas querem aprender para passar no exame não para aprender a conduzir”, prossegue.

“Há aqui um novelo que nunca é desembaraçado porque o exame de condução é uma porcaria. Este é um problema grave”, denuncia José Miguel Trigoso.

José Miguel Trigoso: “medidas de acalmia do tráfego devem ser obrigatórias”
Manuel João Ramos, da Associação de Cidadãos Auto Mobilizados concorda com as críticas do responsável da Prevenção Rodoviária Portuguesa. “É absolutamente fundamental melhorar não só a formação prática como a formação cívica. Na verdade o ensino da condução não envolve de todo a educação cívica”, anota.

É então essencial uma revolução na forma como se ensina a condução? O antropólogo não tem dúvidas. “Sim, porque Portugal está a anos luz, 20, 30 anos atrás do que é o ensino da condução na maior parte dos países europeus”, diz.

“A componente do ensino da condução defensiva, condução mais técnica, por um lado, e por outro a consciência de que o espaço do trânsito é um espaço de cidadania estão completamente ausentes do ensino da condução”, alerta.

“O ensino da condução é um factor absolutamente fulcral para perceber porque não temos grandes melhorias no convívio em espaço urbano. Mas acrescento: a formação dos técnicos autárquicos e a formação dos políticos autárquicos é fundamental para alterar profundamente o espaço público rodoviário urbano”, diz Manuel João Ramos.

“Se não é introduzido o conceito de ‘acalmia do tráfego’ não vamos lá. Os condutores não reagem, em primeiro lugar, ao Código da Estrada. Reagem às condições do ambiente rodoviário. Se o ambiente rodoviário impulsiona a velocidade, seja porque os semáforos estão verdes demasiado tempo ou as faixas são demasiado largas, o automobilista tende a acelerar”, alerta.

“Se são introduzidas medidas de ‘acalmia de tráfego’ que reduzem a tendência para acelerar teremos então uma melhor convivência de todos os elementos do espaço público”, sugere Manuel João Ramos.

“Com carácter obrigatório e não apenas como aconselhamento de boas práticas. Ou não vamos lá”, complementa José Miguel Trigoso.

Gonçalo Gomes: “Os automóveis estão muito mais seguros”
E como se olha a partir de uma grelha de análise a ter como epicentro o próprio universo automóvel? Responde o piloto e consultor Gonçalo Gomes.
 
“O número de acidentes aumentou, mas o número de mortos diminui. Queria referir um ponto importante ao qual estou intimamente ligado. Faço testes de desenvolvimento para algumas marcas importantes, directamente para os construtores”, diz Gonçalo Gomes, cinco vezes campeão nacional em diferentes categorias do desporto automóvel.

“Quando se fala de maior número de acidentes, mas de menos vítimas, é também porque os carros estão muito mais seguros. O risco mortal diminui bastante. Não quer dizer que se esteja a conduzir melhor ou que os portugueses guiem muito bem. Há uma desadequação entre o ensino da condução e a realidade. Falta formação”, denuncia Gonçalo Gomes.

“Dou um exemplo: desde 2010 conheço bem a realidade da Lapónia, passo um mês por ano no Ártico, e reparo que os finlandeses conduzem em estradas completamente geladas e com muito cuidado e experiência”, prossegue.

“Dou outro exemplo: temos, por norma, mais acidentes quando chove. Porquê? Não temos a noção da necessária alteração da condução com piso molhado. Eu posso circular na auto-estrada a 120 km/h e, de repente, começa a chover torrencialmente. Tenho a tendência natural de abrandar – até pela experiência prática que tenho da competição do nível limite de aderência dos carros ao piso”, afirma Gonçalo Gomes.

“Mas, apesar de achar que 120 km/h é um limite desactualizado, posso rodar a essa velocidade numa auto-estrada e, face a uma tromba de água, e, de imediato, reduzir para 70 Km/h, o limiar de aderência do meu carro”, prossegue.

“De repente, alguém que ultrapassei há instantes passa por mim aos mesmos 120 Km/h, porque, na percepção do condutor, está dentro do limite de velocidade. Não tem a noção de que, a qualquer momento, pode perder a aderência e provocar um acidente. Esse processo de tomada de consciência não está bem definido no condutor português”, sustenta o piloto e apresentador televisivo.

“Na Finlândia quando se tira a carta fazem-se cursos de condução defensiva. Os futuros condutores são colocados à prova, exactamente nos limites dos carros. Tudo isto deve ser pensado e deve ser alterado”, recomenda Gonçalo Gomes.

Major Paulo Gomes: “O cenário ideal passa pela alteração de comportamentos”
Por último, mas não menos importante, todo o contrário, a análise do porta-voz da divisão de trânsito e segurança rodoviária do Comando Geral da GNR.

O Major Paulo Gomes propõe uma grelha de reflexão a explicar o conjunto a partir da soma integrada das partes. “Nos últimos anos a redução dos acidentes em Portugal foi provocada não por um único factor, mas por um amplo conjunto de factores”, defende o militar.

“A sinistralidade é um fenómeno que deve ser encarado numa perspectiva holística, ou seja, na importância da compreensão integral dos fenómenos e não na análise isolada dos seus elementos. Encarada em várias perspectivas em que as distintas instituições actuam concertadamente para a diminuição do fenómeno e passar a ter menos vítimas nas estradas”, afirma o Major Paulo Gomes.

“Nos últimos anos temos, de facto, a melhoria dos veículos como o piloto Gonçalo Gomes referiu, mas também, como assinalou o prof. Manuel João Ramos, melhores vias rodoviárias. E também alterações legislativas que determinam sanções mais pesadas para certos comportamentos de risco”, indica.

“Todos estes factores contribuíram para a diminuição da sinistralidade, mas as melhorias significativas só se conseguem com alteração de comportamentos”, alerta o Major Paulo Gomes.

“Só atingiremos o cenário ideal quando os condutores portugueses expressarem ao volante um grau bastante elevado de cidadania e de respeito pelo próximo. O caminho é por aí: o da alteração de comportamento dos condutores”, conclui.