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O comandante que defendeu eleições quando todos se calavam

25 abr, 2015 • Matilde Torres Pereira

Luís Costa Correia, oficial reformado da Marinha, conta como foi indirectamente responsável pela concretização das primeira eleições livres em Portugal, há 40 anos.

O comandante que defendeu eleições quando todos se calavam

No dia em que se celebra os 40 anos das primeiras eleições para a Assembleia Constituinte, a 25 de Abril de 1975, o comandante Luís Costa Correia, oficial reformado da Marinha, conta como foi indirectamente responsável pela concretização dessas eleições, como levantou a voz contra aqueles que julgavam que os portugueses não estariam preparados para votar e como depois regressou tranquilamente à sua unidade da Marinha quando percebeu que os destinos do país estariam já bem encaminhados.

Uma entrevista-testemunho de alguém que nunca quis ser "herói".

Depois do 11 de Março houve agitação e vozes a pôr em causa a realização de eleições. Foi uma das pessoas que as defendia e que dizia que os portugueses estariam preparados para votar. Porquê?
Sempre pensei que o regime para o qual deveríamos evoluir, ultrapassado aquele período de estado ditatorial, não havia alternativa que não fosse virarmo-nos mais para a Europa e procurarmos um regime político que fosse saudável, em que as pessoas fossem tratadas por igual. E nada melhor que eleições para poder instituir um regime desses.

Há poucas semanas houve eleições na Madeira e confusão na contagem dos votos. Isto fez-lhe lembrar alguma coisa?
Não. O que se passou na Madeira foi relacionado com a organização do sistema de recenseamento. A partir de 2008, o recenseamento passou a ser automatizado; isto é, cada cidadão que obtinha ou que tinha um Cartão de Cidadão ou equivalente automaticamente passou a ser inscrito nos cadernos eleitorais. Isto teve como consequência um aumento muito grande do universo de recenseados, como é natural. E, por isso, surgiu o agravamento dos chamados "eleitores fantasma", uma expressão muito conhecida, mas que não corresponde bem à realidade. Se olharmos para os resultados quantitativos das eleições, constatamos que, depois do entusiasmo inicial das eleições de 75, em que votou quase 95% da população recenseada, verificamos que houve uma estabilização à volta dos cinco milhões de eleitores. O número de pessoas que votam habitualmente situa-se entre os cinco milhões e os cinco milhões e 500 mil. Essa variação é que importa considerar quando se fala em abstenções, mais do que as percentagens.

Isso é interessante porque quando olhamos as eleições agora, e estamos prestes a tê-las, aquilo que é noticiado são aquelas percentagens brutais, 50, 60% de abstenção. O que explica estes níveis de abstenção?
É algum desencanto com o funcionamento do sistema político. O sistema está muito baseado nos partidos políticos, num sistema comummente conhecido como "o menos mau de todos", mas o facto é que tem havido pouca osmose, pouca interacção entre partidos políticos e os cidadãos eleitores. A única maneira de ultrapassar isso não é com os famosos ciclos uninominais, mas sim com um aumento das atribuições e competências ao poder local, que seria a base natural para o refrescamento dos partidos políticos. Se as pessoas sentirem que os órgãos autárquicos são capazes de resolver mais directamente os problemas que mais directamente os afligem, por outro lado, comunicar mais com eles, automaticamente as pessoas vêem quem é que se interessa mais pelos seus problemas e naturalmente isso levaria a melhores escolhas dentro dos partidos políticos e no seu próprio funcionamento.

Não parece haver grande espaço para os partidos pequenos chegarem à Assembleia da República.
As eleições de 75 acabaram por definir um universo eleitoral baseado em quatro grandes correntes. E elas têm persistido, não tem havido grandes alterações. Talvez o exemplo do que se passa em Espanha, e talvez um pouco em Itália, venha suceder em Portugal. Esse desencanto com o funcionamento do sistema político foi aumentando. Acabarão por surgir alternativas, mas até agora todas as tentativas débeis que têm ocorrido para além desses quatro grandes sectores não têm tido sucesso, embora se pressinta que agora há mais condições para isso. Provavelmente haverá mais votos brancos, mais votos nulos, mais abstenção e também o perfilar de novos partidos no horizonte.

Voltando aos anos 70. Porque é que a esquerda militar não era a favor das eleições? Teriam medo de que as suas posições afinal se revelassem minoritárias?
Poderia ser. Os militares que ocuparam o poder em 74 não tinham, na sua maioria, umas grandes preparações políticas. Deixaram-se conquistar pelo endeusamento que à volta deles se criou. E isso acaba por não dar margem a que se pense, a que se veja quais são as alternativas melhores e, principalmente, à criação de um regime em que eles não tivessem uma voz muito activa. A própria Assembleia Constituinte, eleita em 75, tinha um mandato restrito na medida em que era obrigada, por acordo com os militares, a integrar os militares no sistema constitucional. E isso ainda ocorreu um pouco em 75, porque o Conselho da Revolução acabou por continuar a existir até 82, e só nessa ocasião se foi entrando numa normalidade clássica.

E porque é que o comandante se colocava à parte deste grupo tão grande e tão influente?
Entre os militares, a maioria, ao fim e ao cabo, estaria mais de acordo com aquilo que eu defendia, simplesmente não tinha os meios para se expressar. Havia muita gente que se alheava daquilo que se passava, ou não tinha muito à vontade para intervir, na medida em que se considerava que quem tinha alguma legitimidade para falar naquelas ocasiões e a quem o povo ouvia mais eram as pessoas que estavam à frente do poder militar.

Na Assembleia Militar que ocorreu de 11 para 12 de Março, respondi, talvez isolado, a opinião que os militares deviam retirar-se da vida política e ajudar a realizar as eleições o tão cedo quando possível. Não me pronunciei sobre aquele aspecto do programa negociado com os partidos incluir a presença militar nos órgãos constitucionais porque, para já, o mais importante era realizar umas eleições livres.

Mas era uma voz relativamente solitária.
Julgo que o general Costa Gomes se tenha aproveitado dessa minha intervenção, escutada aliás em silêncio por toda a Assembleia, para levar a Assembleia a votar pela realização das eleições no mês seguinte.

Isso torna-o um protagonista da nossa democracia, embora não com os devidos créditos...
O importante era que as eleições se realizassem. Não havia propriamente nada que levasse a que as pessoas considerassem fulano, sicrano ou beltrano os grandes heróis disto ou aquilo. Há muitos exageros nessas classificações.

Um ano mais tarde participa, aí sim, mais activamente na preparação e realização das eleições em 76, o que no fundo acaba por preparar o caminho para a sua carreira no STAPE, e o grande trabalho da sua vida foi precisamente o acompanhamento das eleições em Portugal. Passados estes anos todos, que balanço faz do acompanhamento desse processo?
O STAPE foi criado para as eleições de 75 e depois a seguir, na sequência de uma recusa de um convite para ir para o Governo pelo almirante Pinheiro de Azevedo – imagine bem – queria que fosse ministro da Administração Interna ou ministro da Comunicação Social, era uma espécie de totoloto...(risos)…Fui parar ao STAPE precisamente por indicação da pessoa que sugeri ao almirante Pinheiro de Azevedo que ocupasse a pasta da Administração Interna, o então comandante Almeida e Costa que nunca se apercebeu bem de que tinha sido eu que tinha feito a sugestão. Só ao fim de muitos anos ele me perguntou e eu disse que sim.

É a sua marca, trabalhar nos bastidores?
Respondo quando me perguntam, não é? Não vou fazer propaganda. Naquele ano, foi realmente muito trabalhoso. Ocorreram quatro eleições: as legislativas para a Assembleia, as presidenciais, as primeiras eleições regionais nas regiões autónomas e as eleições para as autarquias locais. Todas elas incumbiu-me dirigir um grupo de trabalho composto por ilustres jurisconsultos dos principais partidos políticos – curiosamente o CDS nunca foi convidado para esse trabalho. Essas leis foram as leis eleitorais que perduraram algum tempo. A estrutura ainda permanece a mesma, estão desactualizadas é quando aos prazos para a sua realização.

Outros temas. A rendição da PIDE e o 11 de Março.
Essa história foi interessante porque foi uma questão de curiosidade. Nessa data e por essa hora estava numa reunião no Estado Maior, mas que não tinha nada a ver com as minhas funções. Depois de ter participado no golpe militar e nos primeiros dois meses de preparação para a extinção da PIDE-DGS, tinha regressado à Marinha, à minha unidade, porque entendia que era esse o meu dever. Assim como o fiz quando, depois da concretização das eleições, voltei para a Marinha, porque o problema passava a ser dos portugueses que, através dos órgãos legitimamente eleitos, tinham que conduzir os destinos do país, e não tenho nem devo imiscuir-me nisso.

No que diz respeito ao 11 de Março, tinha estado numa reunião, e as mulheres de oficiais e alguns camaradas nossos que moravam perto do regimento de artilharia ligeira começaram a telefonar a dizer que havia bombardeamentos, e achámos que era boa ideia regressarmos às nossas unidades e aguardar instruções. Simplesmente, a minha unidade era do outro lado do Tejo e àquela hora não haveria nada para fazer a não ser almoçar. A curiosidade impeliu-me, então pus-me em traje civil e desloquei-me às imediações onde acabei por chegar à fala com os dois principais actores dos movimentos militares que lá se realizavam. Aqui tem, foi a curiosidade.

Aliás, eu depois sugeri que talvez devessem procurar ver diante dos responsáveis onde é que as comunicações se transformam. E realmente os responsáveis do golpe, participantes naquela cena, respectivamente o tenente Leal de Almeida e o major Mensurado, pelos paraquedistas, foram ao gabinete do general Mendes Dias e começaram a fazer telefonemas para os seus responsáveis a perguntar o que é que se passava. Chegaram à conclusão que não havia acordo nessa ocasião, já tinha lá chegado um oficial da Marinha enviado pelo brigadeiro Otelo Saraiva de Carvalho, que tinha instruções para prender o oficial da Força Aérea se ele decidisse continuar as hostilidades. Face àquela ameaça, o major Mensurado contactou com o seu responsável e chegaram à conclusão que não havia condições para continuar a guerra.

Que idade tem?
60 mais IVA (risos).

E se ocorresse uma situação semelhante hoje, faria a mesma coisa?
Nunca se fazem as mesmas coisas olhando para o passado. Há princípios que nos norteiam. Esses princípios são indicativos de como provavelmente uma pessoa poderá reagir. Tenho alguns apontamentos que permitem reconstituir isto e aquilo, e tenho quase a certeza que se voltasse atrás... No que diz respeito à maior participação da Marinha da conspiração é algo que seria talvez diferente, e naturalmente, mais alguma pressão no sentido de que o sistema político que saiu das eleições de 75 e da sua Constituição, tivesse dado uma maior solidez ao poder local no sentido de este poder ser a base de rejuvenescimento e reorganização do sistema político.