Tempo
|

Hugo Franco

"Os portugueses no Estado Islâmico podiam ser os nossos vizinhos do lado"

30 mar, 2015 • Ricardo Vieira

O livro "Os Jiadistas Portugueses" é o resultado de uma investigação de quase um ano. "Haverá um ou outro arrependido", dizem os autores, os jornalistas Hugo Franco e Raquel Moleiro.

"Os portugueses no Estado Islâmico podiam ser os nossos vizinhos do lado"
"É um fenómeno muito bizarro que está às nossas portas e em que participam pessoas que podiam ser os nossos vizinhos do lado." Podiam, mas agora estão na Síria ou no Iraque a combater nas fileiras do autoproclamado Estado Islâmico. Os jornalistas do "Expresso" Hugo Franco e Raquel Moleiro seguiram a pista dos cerca de 20 jovens portugueses que trocaram uma vida ao estilo ocidental pela "guerra santa".

O livro "Os Jiadistas Portugueses" (ed. Lua de Papel) é o resultado de uma investigação de quase um ano. Em entrevista, Hugo Franco traça o perfil possível destes radicais e admite que "haverá um ou outro arrependido". Relato também do choque e da depressão em que mergulharam as famílias.

OPorque aderiram estes portugueses ao Estado Islâmico?
É difícil ter uma resposta única para isso. Detectámos várias razões. Algumas delas passam, em primeiro lugar, pela influência do meio onde vivem. Alguns destes 15 a 20 portugueses e cidadãos com passaporte e bilhete de identidade português viveram na zona Este de Londres, onde a comunidade muçulmana é muito forte e onde a influência de grupos radicais faz-se sentir.

E os restantes?
Outra parte do grupo de portugueses são os luso-descendentes em França. Também sentiram a motivação de terem amigos que enveredaram por um islão mais radical, foi talvez o motivo principal. Há várias outras pequenas razões: a rebeldia da idade, o facto de acharem que as suas vidas teriam sentido numa guerra distante com que se identificaram por alegadamente sentirem que poderiam ir ajudar as crianças da Síria contra a guerra que se faz sentir no território sírio. Não há uma resposta única. Porquê estes e não outros? É difícil de responder objectivamente. Pode haver desequilíbrios emocionais pelo meio.

É possível traçar o perfil do jihadista português?
Não há um perfil. O perfil mais "grosso modo" que podemos fazer: são jovens, têm entre 18 e 30 e alguns anos; são pessoas que, se calhar, não tiveram aquele emprego para a vida, tiveram vários empregos, estudaram e tiveram uma vida mais ou menos, não digo instável, mas que estava longe daquela vida clássica do pai de família que tem um emprego há dez anos. No fundo, acho que o espírito de aventura e o espírito de rebeldia ajudam a compor o perfil. O facto de conhecerem pessoas ligadas ao tal islão mais radical e o facto de acharem que por ali podiam ter uma vida com mais entusiasmo, risco, energia e adrenalina… É uma fase da vida deles em que se sentiram abertos a uma nova experiência e que acharam que uma alegada "guerra santa" podia ser uma experiência de vida.

OComo foram recrutados para o Estado Islâmico?
A internet tem sido o principal meio de recrutamento, através das redes sociais, de vídeos do YouTube de pregadores radicais. Passa também por algumas mesquitas mais "underground" de Paris e de Londres, mas essas mesquitas já não são o principal vector de levá-los para a Síria e para o Iraque porque já estão muito vigiadas pelas secretas europeias. As mesquitas podem servir de ponto de encontro, mas não é ali que eles são recrutados, pensamos nós. Também não temos respostas objectivas e científicas para o assunto.

A internet e as redes sociais são mais difíceis de controlar pelas autoridades?
Muito mais difícil. Vários especialistas ingleses nesta área do terrorismo disseram-nos isso, que a polícia ainda continua a ter muitas dificuldades em detectar estes movimentos, porque são feitos muito informalmente. A internet é um mundo muito vasto em que é difícil monitorizar tudo.

A vossa investigação levou-vos a Londres. O que encontraram lá?
Fomos a Londres duas vezes, ao bairro de Leyton e de Walthamstow, na zona este, onde há uma comunidade muçulmana muito grande. Encontrámos alguns amigos e familiares deles em Leyton que desvendaram um pouco a realidade deles e como é que mudaram de estilo de vida. Contaram-nos como é que eles mudaram de jovens que jogavam à bola e tinham famílias cristãs, embora não fossem à igreja, mas tinham uma vida igual a milhões de pessoas na zona de Londres, Lisboa ou Porto. E contaram-nos um pouco como é que eles lá se integraram no novo grupo, como é que conheceram novas pessoas e como essas influências os levaram a converter-se ao islão e depois, mais tarde, a radicalizar-se e viajarem para a Síria, para um território que não conheciam até então. Foram conversas muito importantes para a reportagem e para o livro, conversas que nos fizeram perceber finalmente um pouco mais dessas razões e que nos permitiram fazer o tal perfil e perceber um bocado as razões.

Como é que as famílias lidam com esta situação?
É um horror. Elas ficaram chocadas, estupefactas, muitas delas continuam em depressão. É muito complicado para as famílias gerir isto, ainda por cima terem que ver vídeos deles, receber chamadas de jornalistas a perguntar e a querer saber das razões do filho, do neto ou do sobrinho ter ido para a Síria. Elas estão tão ou mais surpreendidas que nós porque os viram crescer e transformarem-se naquilo que não queriam. As suas vidas transformaram-se num pesadelo, basicamente. Muitas delas vivem na incerteza saber se continuam vivos, o que é feito deles, porque a comunicação é feita pelas redes sociais, que são sempre falíveis. Muitas vezes as páginas vão abaixo porque as administrações do Facebook e do Twitter estão a fechar as contas.

Vocês acabaram por ser uma espécie de ponte entre as famílias e alguns desses jovens?
Pelo menos em dois casos, sim. Mais recentemente quando as páginas deles do Facebook se iam abaixo muitas semanas e as famílias não tinham outra maneira de saber, no desespero, telefonavam-nos. No início, muitas delas até reagiam mal quando ligávamos para elas, o que é natural. No final do ano passado tivemos, pelo menos, dois casos e no início deste ano tivemos dois casos de mães e de pais que nos ligaram a perguntar: "Sabem alguma coisa deles?" E nós íamos, através das nossas fontes, tentar saber o que se passava com eles. Nos dois casos, felizmente, nenhum tinha morrido.

No livro relatam que a mãe do luso-descendente Mickael dos Santos chegou a denunciar o filho à polícia francesa, mas aparentemente ninguém fez nada.
Essa história é brutal. A própria mãe, vendo o filho transformar-se num radical em França, a tornar-se outra pessoa, achou por bem alertar as autoridades que ele poderia cometer um acto louco qualquer. Mesmo assim não foi possível impedir a viagem dele para a Síria. Também temos que nos lembrar que em França há, pelo menos, 1.200 rapazes e raparigas que viajaram para a Síria e é difícil para as autoridades conseguir impedir que cada um vá. Uma coisa é falarmos num cenário português, em que há um grupo de 15 ou 20, outra coisa é falar de 1.200. É difícil para as autoridades controlar todas as viagens e todos os cidadãos que querem ir para lá.

Mais à frente relatam que a mãe de Dylan Omar foi tentar resgatar o filho ao Estado Islâmico. Nos contactos que mantiveram com os jihadistas, eles falam em regresso?
Nenhum deles fala em regresso. Pelo menos, oficialmente não querem regressar e eles sabem que, se quiserem regressar, não será aos jornalistas que o vão confessar, porque sabem que a conversa deles pode ser publicada num órgão nacional.

Basta alguém do Estado Islâmico saber ou desconfiar quem foi que disse isso e a pessoa fica logo em perigo de vida. Por estas razões, não sabemos se por convicção ou por medo, nunca confessaram que queriam regressar a Portugal, a França ou Inglaterra, onde viviam até há pouco tempo.

Durante uma conversa que tiveram com o jihadista Fábio Poças, ele diz: "Havemos de voltar. Eu e o Estado Islâmico". Que ameaças pode esperar Portugal no futuro?
Não vejo nenhum deles a voltar para cometer nenhum acto terrorista que ponha em causa a nossa segurança. Sinceramente, acho que não, mas tanto eu como a Raquel [Moleiro] sabemos muito pouco. Tentamos saber o máximo possível, mas temos a noção que sabemos muito pouco sobre eles. Precisaríamos de estar com eles, de ter horas e horas de conversas muito sinceras para perceber, de facto, o que passa na cabeça deles. Mas, pelo que vimos desde o início deste ano, com os atentados em Paris, as rusgas policiais na Bélgica, o atentado na Dinamarca, tudo é possível. As nossas autoridades têm que estar atentas.

Nesses contactos, algum deles mostrou algum arrependimento por ter partido para a Síria?
Também não. É um pouco como a pergunta sobre se querem voltar. Eles não nos confessam isso. É impossível obtermos essa informação, porque eles sabem que se nos contam uma coisa dessas põem em risco a vida deles lá. Imagino que há alguns que queiram regressar, temos informações por portas muito travessas de que haverá um ou outro arrependido e o próprio ministro [dos Negócios Estrangeiros] disse numa entrevista à Renascença que havia três portugueses que estavam arrependidos e queriam voltar.

Qual foi o caso que o impressionou mais?
Se calhar, a entrevista que fizemos em Setembro ao Mikael Batista, um luso-descendente que foi para a Síria com o Mickael dos Santos, um amigo dele também luso-descendente. Talvez o relato dele muito duro e muito frio: afirmava que o que gostava mais de fazer na Síria era "treinar e matar". De repente, ter alguém a dizer-nos isto impressionou-nos, dado o grau de frieza e percebemos, um pouco, como funciona a cabeça deles. Talvez tenha sido um dos factos e uma das partes da investigação que nos impressionou mais.

A que conclusão chegaram após um ano de investigação?
Começámos isto em Abril do ano passado. Tentámos perceber o que leva um jovem que vive aqui alistar-se num exército bárbaro que mata inocentes, que corta cabeças, que faz aqueles horrores todos que nós vimos, aqueles vídeos de decapitações. E é de facto estranho porque nenhum deles tem cadastro criminal, não tem um passado de violência. É um fenómeno muito bizarro que está às nossas portas e em que participam pessoas que podiam ser os nossos vizinhos do lado.

Tanto eu como a Raquel crescemos em zonas suburbanas de Lisboa, ironicamente não muito longe da casa de dois deles. Quando nós escrevemos que podia ser quase um de nós é um bocadinho a pensar nisso. Podia ser o nosso vizinho do lado, um amigo qualquer de infância que, de repente, lhe deu na cabeça e enveredou por esta via.

Eles sabem que vai ser publicado um livro sobre eles?
Imagino que sim. Não os informámos, não tínhamos que o fazer. Informámos o Fábio quando ele falou connosco, ele sabia que nós íamos escrever um livro. Tivemos o cuidado de informar os familiares com que falámos sempre desde o início e também tivemos o cuidado de não os identificar no livro, não escrever o apelido, dar o mínimo possível de pistas sobre onde é que eles estão. Mantivemos uma relação de confiança com eles e a prova disso é que perguntam-nos onde os filhos estão, dizem que gostavam de ler o livro.