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Entrevista

"Precários ou recibos verdes nunca vão constituir família"

15 jan, 2015 • Carla Caixinha

Os portugueses desejam mais filhos, mas não têm capacidade para os ter, diz o presidente do Instituto de Políticas Públicas, Paulo Trigo Pereira. Medidas do relatório encomendado pelo Governo sobre natalidade são "micromedidas": o país tem que crescer e gerar emprego.

"Precários ou recibos verdes nunca vão constituir família"

O presidente do Instituto de Políticas Públicas (IPP) discorda das novas tabelas de IRS, considerando que lhes falta justiça, e defende um maior compromisso político quanto à estabilidade das políticas adoptadas, independente das maiorias no poder.

Para o economista Paulo Trigo Pereira, num país amigo das crianças e das famílias deve haver crescimento económico, emprego e haver estabilidade do emprego. Caso contrário, os jovens vão continuar a sair do país e os que ficam vão ou não ter filhos.

Para provar o seu ponto de vista, cita um relatório da Comissão Europeia. O "Ageing Report" de 2015 mostra duas realidades distintas: Portugal é dos países que vai ter maior envelhecimento (perde 20% da população); mas as pessoas gostariam de ter o dobro dos filhos que efectivamente têm. "Desejam, mas não têm capacidade para os ter", alerta.

O professor no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) é um dos participantes na conferência "A problemática da natalidade em Portugal: uma questão social, económica e política" reúne peritos, académicos e políticos, esta quinta e sexta-feira, no Instituto de Ciências Sociais, em Lisboa.

Na conferência vai ser apresentado o relatório sobre natalidade, coordenado por Joaquim Azevedo e encomendado pelo Governo. Como é que Portugal pode ser amigo das crianças e das famílias?
Há dois patamares com que vejo a questão da natalidade. Um tem a ver com o país e com a viabilidade social, económica e política e está relacionado com as questões macro do crescimento, do emprego e da estabilidade do emprego. Os jovens que têm contratos precários ou [trabalham a] recibos verdes nunca vão constituir família, pois não têm condições para pagar um crédito à habitação ou para ter um mínimo de estabilidade.

Depois, há um segundo nível, relacionado com as políticas mais micro, orientadas para as famílias. Há um pano de fundo fundamental sem o qual as estas últimas medidas, que também são importantes, têm uma eficácia reduzida.

A situação foi agravada pelas políticas de austeridade pós-troika?
Eu acho que sim. De facto, dentro deste esforço de consolidação orçamental houve cortes em prestações sociais – Rendimento Social de Inserção (RSI), o Complemento Solidário para Idosos, o abono de família. Estas pessoas têm que ter alguma estabilidade temporal para que as famílias possam fazer planos. Não estou a dizer que não tenha que haver alguma contenção – e eu sou professor de Finanças Públicas e sensível ao argumento dos benefícios que façam reduzir a receita fiscal ou o aumento de despesa –, mas o corte significativo que existiu obviamente criou um aumento de taxa de pobreza, entre os jovens, desempregados e famílias monoparentais. Como é que é possível ter alguma estabilidade nesta situação?

Volto ao ponto que para mim é o fundamental: enquanto Portugal não conseguir crescer e criar emprego e emprego estável, não vamos ter padrões de vida minimamente aceitáveis e as pessoas não podem fazer projecções. Ter um filho não é uma decisão que se toma para dois anos, é para uma vida. Se uma pessoa não tem uma perspectiva de cinco ou dez anos de ter alguma estabilidade vai ter filhos?

Os portugueses deixaram de querer ter filhos…
A natalidade e o decréscimo da população é um problema gravíssimo no país. Saiu agora o "Ageing Report" de 2015, relatório da Comissão Europeia, e Portugal é dos países que vai ter maior envelhecimento: perde 20% da população.

Vamos passar a ser oito milhões de habitantes e isto está relacionado com as três variáveis que mais condicionam a evolução natalidade: a taxa de fecundidade, a esperança de vida e o saldo migratório.

Embora este relatório revele um dado interessante: as pessoas desejam ter o dobro dos filhos que efectivamente têm. A taxa anda pelos 1,3/1,2 e o número médio de filhos que gostariam de ter situa-se nos 2,3, portanto é quase o dobro. Desejam, mas não têm capacidade para os ter.

Há aqui uma coisa que nos une a todos nesta conferência. Apesar de termos perspectivas diferentes, temos um problema grande entre as mãos que é a questão da dimensão da população, que não está relacionada com a taxa de natalidade, mas com o saldo migratório. Se Portugal estivesse a crescer, em vez de termos uma saída de jovens, tínhamos uma entrada e isso aumentava a população.

Vivemos num país "antinatalista", como disse à Renascença Ana Cid Gonçalves, da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas?
Vivemos num país que de facto não favorece nada a natalidade. Não há políticas integradas para a natalidade, embora haja muita gente a estudar o assunto há vários anos.

Em Abril de 2014, o Governo encomendou o tal estudo como o professor Joaquim Azevedo. Finalmente percebeu que é importante uma política integrada em relação à natalidade, porque sem isso, por mais descontos que se dê no IRS, não chega.

Uma estratégia de promoção à natalidade envolve muitas coisas: como a questão do apoio às mães, do acesso às creches, da conciliação do trabalho com a vida familiar, de não discriminar as mulheres pelo facto de engravidarem. Há uma panóplia de medidas que deviam ser inseridas num programa transversal.

Não concorda com as novas tabelas de retenção na fonte de IRS?
Discordo com o formato concreto, que no fundo é reduzir a taxa efectiva para todas as famílias com filhos e obviamente que quem beneficia mais são as famílias com maiores rendimentos. Isto é o que acontece quando se está a fazer esta redução, independentemente dos rendimentos das famílias. O que teria feito em alternativa seria aumentar a dedução específica por cada filho que se tem.

Passos Coelho já admitiu que a baixa de natalidade levará, pelo menos, dez anos a resolver. Tendo presentes as conclusões do relatório sobre natalidade, quais as medidas mais prioritárias para haver uma progressão mais rápida?
As variações das taxas de fecundidade são demoradas no tempo. São necessárias políticas activas e de médio prazo. Se quer que lhe responda sinceramente, não acredito na reversão da tendência enquanto o país não crescer e criar emprego. Se não conseguirmos fazer isto, não há volta a dar. Ou seja, os jovens vão continuar a sair do país, os que ficam vão ou não ter filhos – aliás, a idade média do primeiro filho é cada vez mais tarde, perto dos 30 anos. Portanto, estas tendências têm a ver com um declínio económico português. Já vem de trás, mas acentuou-se na última década e meia. E enquanto não se reverter isso não há volta dar.

Dessas medidas, que diz serem "micro", há algumas que destacam?
Estou de acordo com medidas selectivas que tenham impacto. Por exemplo, as que permitam conciliar a vida familiar com o trabalho. Curiosamente, este Governo fez ao contrário e na administração pública os horários tornaram-se mais rígidos e aumentou-se a carga horária.

Outra medida é a atribuição obrigatória de médico de família a todas as mulheres grávidas. Mas algumas já existem, como os tarifários sociais para água, saneamento e resíduos. A questão não é só ter famílias numerosas, mas ser-se carenciado, o que é diferente. E neste aspecto o relatório sobre natalidade é mais fraco, pois não toca muito a questão da equidade, ou seja, não faz esta distinção muito bem. Existem vários tipos de famílias e o Estado não teve ter por detrás das suas políticas um modelo de família.

Mas dentro dessas medidas há muitas que estão relacionadas com fiscalidade. É tudo para reduzir para impostos: deduções à colecta de despesas de saúde, educação, alterações ao imposto municipal sobre imóveis das famílias mais numerosas. Tudo isto complexifica imenso o sistema fiscal e, sobretudo, não tem esse impacto que está anunciado.

Em Portugal existem medidas avulsas adoptadas por algumas câmaras, como Mora e Boticas. Bons exemplos que devem ser seguidos?
Não, essas medidas não têm impacto nenhum, porque as pessoas vão atrás desses subsídios, estão lá o tempo necessário para os receber e depois vão-se embora. Isso não são medidas estruturais de longo prago. São, às vezes, um bocado eleitoralistas e não é isso que atrai o emprego para esses municípios do interior. O que atrai emprego é haver investimento lá. Dar um subsídio de 200 ou 300 euros por cada criança que nasce é o tipo de medidas que tem um efeito de curtíssimo prazo, que não perdura. O que queremos não é alterar a taxa de natalidade nos próximos dois anos, queremos reverter uma tendência que já vem de décadas e que se projecta até 2016.

França, que tem a segunda taxa de fertilidade mais elevada da União Europeia, é um bom exemplo, pois aposta na estabilidade das políticas neste campo.
O chamado "inverno demográfico" é um problema ao qual temos de responder com medidas estruturais e sustentadas. Existe a necessidade de haver um compromisso social e político de médio prazo, porque as maiorias vão-se alternando e não sabemos quem é que vai estar no Governo. Isto não são políticas para amanhã, têm que ser estáveis durante bastante tempo. Nós temos sido muito pouco capazes de fazer estes compromissos de mais longa duração, por causa das eleições e há uma tendência para tomar medidas que ganham alguns votos, mas não têm impacto a médio prazo.