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"Os jornalistas precisam de não dormir na 'cama' de ninguém"

23 out, 2014 • João Carlos Malta

Debate juntou três jornalistas para discutir "De que jornalismo precisamos?" e as respostas foram muitas. Em comum a ideia de que o ponto de partida não é o melhor. "Há [proprietários de] grupos de comunicação para quem é indiferente ter uma rádio ou uma televisão, ou uma fábrica de salsichas".

A pergunta que lançava o debate era ampla: "De que jornalismo precisamos?". O jornalista do "Público" José António Cerejo encarregou-se de a abrir ainda mais: "Precisamos de muitos tipos. Não de uma espécie em particular". De seguida, o redactor que se dedica à investigação, a última dos quais ao caso Tecnoforma, fechou o ângulo de abordagem e colocou a tónica na independência face aos poderes.

"Os jornalistas precisam de não dormir na 'cama' de ninguém do lado de onde vai buscar a informação", começou por afirmar. E prosseguiu: "[O jornalista] Precisa de aborrecer. Não os leitores, mas os que detêm a informação. O jornalismo tem de incomodar".

O encontro ocorreu esta quinta-feira na FNAC do Colombo, em Lisboa, e contou ainda com a presença da repórter da RTP Ana Luísa Rodrigues e  com a directora do “Le Monde Diplomatique”, jornal que organizou o evento, Sandra Monteiro.

Cerejo exemplificou, de  seguida, de que é que o que o jornalismo não precisa. "Os jornalistas não podem passar a vida à mesa, em jantares e em almoços com o poder. Não podem viver em conluio com as fontes de informação". E foi mais preciso: "As fontes de informação estão de um lado e os jornalistas de outro".

Abraços e beijinhos e as ervas comestíveis ou venenosas
Este jornalista reconheceu ainda que esta não é uma postura nada fácil de assumir, num universo polvilhado de "beijinhos e abraços" e os "convites sucedem-se".

Por falar neles, Cerejo reporta um caso recente que exemplifica o que diz: "Há uma pessoa muito conhecida nesta terra a quem ando há meses a pedir informações e que me as tem recusado. Convidou-me agora para um encontro".

"Aceitei, mas sei que ele está de um lado e eu do outro", acrescentou.

E culminou com a ideia de que os jornalistas são cada vez mais precisos. Porquê? "Para ajudar os leitores a distinguir as ervas venenosas das que são comestíveis".

O jornalismo está cada vez mais sujeito "à voragem do tempo", concordaram todos os oradores. "Um rolo compressor", segundo Ana Luísa Rodrigues. Para a jornalista da RTP, é fundamental que o jornalismo seja "menos banal e menos ao nível da conversa de café que temos assistido".

Bairro Alto e o perigo do medo do medo
Ana Luísa Rodrigues colocou ainda a tónica na falta de experiência das redacções e deu uma imagem. "Às vezes, olho para o lado e parece que estou no Bairro Alto. OK, não é bem assim, ainda há algumas pessoas mais velhas. Mas tenho menos de 40 anos e já sou das mais velhas [na redacção]".

A exigência, disse, tem de ser maior na profissão. E reflectiu ainda acerca da neutralidade que os jornalistas defendem, mas que, segundo a jornalista, não deve deixar que defendam os valores universais dos direitos humanos.

E referiu um problema que, defende, está a crescer. "O medo do medo [que se está a instalar]". Por fim, uma constatação de uma realidade que diz existir ao nível do topo hierárquico dos meios de comunicação. "Há [proprietários de] grupos de comunicação para quem é indiferente ter uma rádio ou uma televisão ou uma fábrica de salsichas", concluiu.

Já a directora do "Le Monde Diplomatique", Sandra Monteiro, reforçou a necessidade de acabar com uma lógica que, disse, domina a prática jornalística: "tens de estar daqui a 15 minutos num sítio para fazer um trabalho sobre um assunto do qual não sabe nada".

Argumentou ainda que o jornalismo não pode estar a repetir-se "até se tornar irrelevante". Entre mais de uma dezena de pontos em que assentou a resposta sobre de que é que o jornalismo precisa, Sandra Monteiro disse ainda que se deve recusar o “‘low cost’ na profissão".  Ou seja, o trabalho  feito de forma gratuita ou a baixo custo.

Após um debate muito participado por muitos jovens estudantes, ex-jornalistas e seguidores do fenómeno mediático, em que surgiram muitas dúvidas sobre a propriedade dos média, a publicidade, o futuro do jornalismo, as pressões, a censura e várias angústias, Cerejo respondeu: "São muitas, muitas perguntas. Não sei, não sei. Também estou perdido. Não há milagres".

"Há alternativas possíveis, mas são difíceis.”