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Entrevista

Aproveita, é nos funerais que eles compram mais

21 out, 2014 • Ricardo Vieira

Antropólogo acompanhou durante um ano e meio o mundo dos "call centers" e viu traços das fábricas de há 100 anos. João Carlos Louçã fala num trabalho "altamente alienante e muito desgastante", em que ninguém conhece o patrão. Mas há novas formas de resistência.

Aproveita, é nos funerais que eles compram mais
O antropólogo João Carlos Louçã acompanhou a vida de 19 trabalhadores de "call centers" durante um ano e meio. Imaginou o "call center" como uma fábrica dos "Tempos Modernos", o filme em que Charlie Chaplin veste a pele de um operário explorado. Nas linhas que se seguem, João Carlos Louçã explica a que conclusões chegou na sua tese de mestrado, que está publicada em livro, "Call Centers – Trabalho, Domesticação, Resistência".

"Ir além do admissível é, normalmente, aquilo que lhes é dito para fazer", diz. O que pode significar tentar vender um produto a alguém que está num funeral.

Por que decidiu fazer uma tese sobre trabalho em "call centers"?
O trabalho e as formas de trabalho estão a mudar de forma muito acelerada. Quis aprofundar essa visão da mudança do trabalho. Imaginei – esse foi o meu ponto de partida – um "call center" como uma fábrica dos "Tempos Modernos", não os tempos modernos dos dias de hoje, mas os de Charlie Chaplin: trabalho mecanizado, força de trabalho absolutamente domesticada e em gestos repetitivos no período de trabalho. Essa foi a minha hipótese de trabalho.

E confirmou essa ideia ou não?
Confirmei, por um lado, desmenti, por outro. As tecnologias de informação e a forma como as pessoas as utilizam dão uma componente de poder às pessoas que trabalham que no final do século XIX e princípio do século XX, nesses primeiros momentos da industrialização, os operários não tinham. Um operador de "call center", por mais difícil que seja a sua situação profissional, é uma pessoa que, geralmente, sabe línguas, sabe mexer em diferentes programas informáticos, tem facilidade de relacionamento com outras pessoas, quanto mais não seja através do telefone, é uma pessoa com muitas competências que os operários do princípio do século XX não tinham e isso dá-lhes, evidentemente, alguma capacidade de reflectir sobre o mundo em que vivem.

Os trabalhadores de hoje são mais qualificados, mas isso reflecte-se no salário?
Não. De todo. A componente do salário é, provavelmente, o elo fraco desta relação laboral. Há muitas empresas, e não só no sector dos "call centers", que já nem pagam salários. Há estágios não remunerados ou estágios em que é pago só o subsídio de refeição, na melhor das hipóteses, o passe social. Períodos de formação, por exemplo, de um mês ou de dois sem salário ou, na melhor das hipóteses, em que esse período de formação é pago se a pessoa tiver um contrato posterior.

Qual é a média salarial?
As pessoas ganham pouco. Regra geral, o salário mínimo. Pode ser um bocadinho mais na zona de Lisboa, mas depois se for para Castelo Branco ou para a Guarda é o salário mínimo. Depois há a componente variável do trabalho. São prémios de produtividade, prémios associados às vendas que se fazem, às chamadas que se atendem, aos casos que se encaminham, ao reconhecimento de um trabalho bem feito. O problema é que estes prémios fazem a diferença entre um salário muito baixo, o salário mínimo, ou um salário que permite pagar as contas ao fim do mês.

Como funciona essa componente variável do salário?
As pessoas não sabem nunca quais são os critérios de atribuição desta componente variável do salário porque as pessoas não os conhecem. Isso nunca é dito, nunca é claro, estão constantemente a mudar e a responsabilidade da sua atribuição também nunca é clara, porque dentro de um "call center" nunca sabemos quem é o patrão. E isso é um elemento fundamental para as pessoas estarem neste mundo perdidas sem saber a quem é que reivindicam direitos de trabalho.

Não conhecem o patrão?
Há uma empresa de "call center" que é contratada por outra empresa para fazer uma campanha. Até aqui tudo bem. O problema é que as pessoas que trabalham lá são, por sua vez, contratadas por empresas de trabalho temporário. O vínculo de trabalho formal é com a empresa de trabalho temporário, mas a chefia directa é com a empresa de "call center": quem determina salários, horários, procedimentos, prémios, tudo, é a empresa cliente, que contrata a campanha. Há aqui um jogo de sombras chinesas.

Depois, é também a empresa cliente que gere essa relação com as empresas de trabalho temporário e um trabalhador pode mudar de empresa de trabalho temporário, de um momento para o outro, porque a empresa cliente assim o determina e apresenta-lhe uma folha para assinar com o novo contrato com a empresa de contrato temporário. Quem é o patrão, quem tem a responsabilidade das condições de trabalho é qualquer coisa que nunca é claro e que protege essa nebulosa em que operam este tipo de empresas.

Nos casos que acompanhou, a pressão para vender levava os trabalhadores ir além do admissível?
Ir além do admissível é, normalmente, aquilo que lhes é dito para fazer. Sempre. Desse ponto de vista, haverá empresas mais e menos escrupulosas, haverá técnicas sem qualquer tipo de escrúpulos e haverá outras técnicas com alguns escrúpulos, mas ir sempre além do admissível é, normalmente, a técnica utilizada para vender uma coisa que, normalmente, as pessoas não precisam.

Uma pessoa que está no serviço de televendas contou-me que houve alguém do outro lado [do telefone] que lhe respondeu: "Não posso atendê-lo agora, estou num funeral de um parente próximo". A chamada estava a ser ouvida pelo supervisor que, imediatamente, desceu e disse: "Aproveita, aproveita agora, porque é agora que eles compram". As pessoas em funerais, aparentemente, compram mais.


Estes não são os "Tempos Modernos" de Chaplin, mas há parecenças, diz João Carlos Louçã
 
O perfil do trabalhador de "call center" tem vindo a mudar?
Neste momento, há pessoas de 40/50 anos a trabalhar em "call centers" e alguns a trabalhar há muito tempo. Entrevistei pessoas dos 26 aos 52 anos e algumas a trabalhar há muito tempo em "call centers", outras menos. O perfil de trabalho jovem já não se aplica porque, há já alguns anos, basta ir a um "site" de empregos e percebe-se que os "call centers" são o trabalho disponível. Não há outro. E são o trabalho disponível para pessoas com uma formação mínima, que saibam lidar com computadores, que saibam falar ao telefone, que precisam de falar línguas, muitas vezes. Esse é o trabalho disponível para uma pessoa que termina os seus estudos ou que ainda está a fazer os seus estudos ou para uma pessoa de 40 anos que perdeu o trabalho que tinha por qualquer motivo. Esse registo de trabalho jovem já não corresponde à realidade.

Quais são as marcas comuns entre as pessoas que acompanhou?
Um trabalho altamente alienante e muito desgastante, sempre. Fisicamente muito desgastante. Há trabalho em "part-time", mas quem trabalha a tempo inteiro no "call center" fica muito desgastado e muito incapaz de gerir outros aspectos da sua vida fora do trabalho. Havia uma senhora que me dizia: "Fora do trabalho nem respondo ao telemóvel, não consigo comunicar por telefone com ninguém, não consigo atender telefones'. A este ponto, as pessoas fora do trabalho deixam de se conseguir relacionar com o mundo. Claro que nem todas as pessoas são assim, mas [há] um desgaste muito grande, um cansaço muito grande, problemas emocionais, depressões nervosas, uma série de doenças associadas ao tipo de trabalho muito forte e uma expectativa muito grande, sempre, de conseguirem sair dali.

O que pode ser feito para humanizar o "call center"?
Entrevistei uma pessoa que trabalhava num "call center" em Barcelona, que tinha cadeirões daqueles que dão massagens disponíveis para os trabalhadores na pausa e que podiam também ir à internet nos seus tempos de pausa. Eu considerei isto muito humano (claro que a humanidade preferível é aquela que retribui um trabalho de forma digna, de forma suficiente para uma pessoa conseguir viver e isso significa salários muito maiores do que aqueles que são aplicados nos "call centers").

A consideração do desgaste do trabalho também é importante e é preciso haver mais tempos de pausa para as pessoas que estão no atendimento em linha e é preciso, provavelmente, haver tempos em que as pessoas não estão as oito horas do seu trabalho a fazer a mesma coisa.

Depois, é acabar com a componente variável do trabalho, que é uma forma de chantagem, e isso ser salário das pessoas e tem que ser um salário que permita trabalhar. Se isto acontecesse os "call centers" seriam locais de trabalho muito mais saudáveis.

Portugal é um bom país para a instalação de "call centers"?
Portugal é um bom país na Europa para estas empresas se instalarem porque é um país de mão-de-obra barata e é tudo em função disto. Mão-de-obra barata e alguma qualificada também, porque o facto de haver aqui muita gente a falar línguas é importante. O facto de haver um conhecimento da utilização da informática bastante razoável também é importante, portanto, há muitas empresas, por exemplo, francesas, neste momento, que se estão a instalar aqui para atender para França. Estamos a fazer atendimentos para França.

Voltando ao princípio da nossa conversa, mudou assim tanta coisa desde os "Tempos Modernos", de Chaplin?
Apesar de tudo, mudou. O Chaplin fez um filme magnífico sobre a desumanidade dos ritmos de trabalho no mundo do princípio do século XX, da industrialização, quando os operários faziam mais de oito horas seguidas os mesmos gestos, faziam a mesma coisa o dia todo. No caso do Chaplin era girar uma porca com uma chave de parafusos e hoje as pessoas são igualmente exploradas, como eram nessa altura.

Os sindicatos, provavelmente, são instrumentos menos relevantes do que eram nessa circunstância, mas, apesar de tudo, o facto de as pessoas, hoje, saberem ler, escrever, enviar um email, tudo isso são formas que dão poder às pessoas e que, obviamente, os operários do princípio do século XX não tinham.

Houve momentos nos "call centers" em Portugal em que houve processos de luta muito significativos, desde histórias em que as pessoas foram todas despedidas, histórias em que as pessoas foram todas reintegradas, em que os tribunais deram razão aos trabalhadores contra as empresas de trabalho temporário. Há histórias de coisas que se conseguiram quando as pessoas encontram força, ânimo e vontade para lutar. Voltando à sua pergunta dos "Tempos Modernos", de Charlie Chaplin: há diferenças, não são é assim tantas.

Por um lado, há um problema grave de desemprego, por outro, há empregos em que as pessoas ganham pouco. Como lidar com isso?
O desemprego é sempre uma forma de pressão para baixar os salários. Quanto mais pessoas desempregadas menos vamos receber dos nossos patrões porque o argumento "Se não queres estas condições, há quem queira ocupar o teu lugar por condições inferiores àquelas que tu tens, com salário mais baixo, a trabalhar mais horas" colhe sempre.

Quais foram as principais conclusões a que chegou?
Cheguei a várias. Os patrões são invisíveis, num "call center" ninguém sabe para quem trabalha, ninguém sabe a quem se deve dirigir para reclamar condições de trabalho, para reclamar salário, para reclamar direitos. Isto é um sistema de protecção máxima de quem acumula riqueza com esta actividade. Uma pessoa pode não ter sequer um escritório em Portugal e fazer milhões todos os meses com a actividade de um "call center".

Segundo aspecto que eu queria relevar: onde as pessoas ainda não encontraram a força e as condições suficientes para terem formas de resistência colectivas têm formas individuais. É o pauzinho na engrenagem, é usar todos os minutos da pausa a que têm direito, é enganarem o sistema informático, encontrarem o buraco do sistema informático para terem mais 30 segundos entre cada chamada, para descansarem a cabeça, é não ouvirem nunca o que o supervisor lhes diz aos gritos. Há variadas formas dessa resistência individual e que são formas muito interessantes que revelam o não conformismo das pessoas.