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Catarina, Virgínia e Filipe. Três portugueses na luta pelos direitos humanos

20 out, 2014 • Inês Alberti

Candidatura portuguesa ao Conselho de Direitos Humanos da ONU será votada na terça-feira, em Nova Iorque. A Renascença foi conhecer três portugueses que trabalham na área dos direitos humanos e que têm críticas a fazer a Portugal.

Catarina, Virgínia e Filipe. Três portugueses na luta pelos direitos humanos
Pelo direito à água e ao saneamento, pelo direito ao trabalho e à segurança social, pelos direitos das crianças. Pelos direitos humanos. É a isto que Catarina Albuquerque, Virgínia Brás Gomes e Filipe Páscoa dedicam a sua vida.

O país é, com a Holanda, candidato a membro do Conselho de Direitos Humanos (CDH) das Nações Unidas. A eleição é esta terça-feira, em Nova Iorque.
A Renascença foi conhecer três portugueses que trabalham na área dos direitos humanos e que também têm críticas a fazer a Portugal.

Catarina Albuquerque recebe-nos no seu gabinete perto do Largo do Rato, em Lisboa, para uma entrevista rápida antes de partir para uma missão nos Estados Unidos. Em Detroit, as autoridades estão a cortar o acesso à água a mil famílias por semana.

Relatora especial da ONU para os direitos da água e saneamento, desde 2008, Catarina percebeu que gostava era de ajudar os outros, quando fez voluntariado num bairro de lata em Lisboa, enquanto ainda estudava.

“[Eram] pessoas que tinham tido menos sorte na vida do que eu, e achava que fazia parte da minha responsabilidade, por ter tido sorte quando nasci, ajudar as pessoas que tinham menos do que eu”, explica.

Pessoas fora do mapa
Catarina já esteve em 15 países (Japão, Estados Unidos, Brasil, Namíbia, Senegal, Costa Rica, Bangladesh...). Nestes seis anos, o que mais a chocou foi a discriminação e exclusão – “pessoas fora do mapa” – a que nenhum país escapa.

“O que me impressiona mais é a exclusão sistemática de determinados grupos da população no acesso à água. Não há nenhum país em que não se veja discriminação e estigmatização relativamente a determinados grupos da população. Não há nenhum país à face da Terra que não tenha falhas em matéria de direitos humanos. Não há”, reforça.

Portugal também não foge à regra: tem boas leis, falta aplicá-las da melhor forma, afirma. A crise e as medidas de austeridade estão a afectar o acesso à água por parte dos agregados familiares, que não têm capacidade para pagar as facturas. Recorrem cada vez mais a poços e a mangueiras em postos de abastecimento de combustível.

Há ainda comunidades, como os sem-abrigo e os ciganos, com problemas crónicos de falta de água e saneamento.

“Eu digo sempre: experimente sair de casa um dia e passear-se sem dinheiro na carteira. Ou seja, sem possibilidade de ir a um café, beber água, ir à casa-de-banho. Onde é que vai a casa de banho? Não tem sítio para ir à casa de banho, não tem água para beber”, exemplifica.

Não há quadros perfeitos
Também Virgínia Brás Gomes aponta o dedo à crise para as violações dos direitos humanos em Portugal, principalmente os direitos económicos sociais e culturais (DESC).

Virgínia trabalha há 30 anos na Segurança Social e há dez no Comité da ONU para os DESC.

Tal como Catarina, Virgínia Brás Gomes elogia o “enquadramento quase perfeito” de Portugal “num ponto de vista constitucional”, mas nota que falta a implementação das medidas necessárias e da avaliação permanente.

Mas “nenhum país tem um quadro perfeito”, reconhece. Na Europa, por exemplo, a violação dos direitos económicos e sociais é comum a todos os países sob medidas de austeridade.

“Em muitos países sujeitos a medidas de austeridade, a tendência dos governos é cortar nas despesas sociais”, o que “tem um impacto negativo em todos os DESC, especialmente os sociais e económicos”, diz.

“Os países europeus podem estar a passar uma mensagem contraditória com os próprios valores do modelo social europeu e que não encoraja os outros países em desenvolvimento a pôr em prática políticas universais. Porque a mensagem que estamos a passar é: ‘Atenção! Isto não é sustentável a longo prazo’”.

Filipe e a "cascata"
Filipe Páscoa, que trabalha na Aldeia SOS do Brasil, diz que a vulnerabilidade social “acaba por aparecer em cascata”. “Chega-se a questões de violações de direitos básicos como a alimentação, a higiene e a saúde”, diz.

No seu trabalho no Brasil, Filipe está em contacto com crianças, jovens e adolescentes que viram os seus direitos violados e que muitas vezes vêm de famílias onde há casos de dependência de álcool e drogas.

Também trabalhou na Europa de Leste e América do sul, onde “as democracias são muito jovens e as questões dos direitos humanos não são prioridades práticas”, explicou à Renascença pelo telefone.

Filipe considera que em Portugal, “de uma forma ou outra, as pessoas têm os seus direitos garantidos”. Mas, acrescenta, há situações a resolver, nomeadamente em relações à forma de tratamento dos detidos nas prisões, por exemplo. “Os direitos de minorias, questões de discriminações e questões de género” “continuam a existir num país ocidental e numa democracia estabelecida como Portugal.”

Filipe (que foi consultor), Catarina e Virgínia estão felizes com as escolhas que fizeram.

Filipe: “Senti que queria trabalhar mais no sector social e tomei essa decisão interna. Evoluí na carreira internacional e sou feliz”.

Virgínia: “Considero-me privilegiada por poder carregar a minha experiência nas políticas públicas e aplicar no trabalho independente, dizer da minha justiça. É a cereja no topo do bolo”.

Catarina: “Se calhar, não é uma escolha muito lógica, mas eu, para ser honesta, nunca pensei muito ‘Será que fiz a escolha boa?’. Sou feliz – é o que me interessa.”