Tempo
|

Direito Humanitário

"É muito difícil obrigar terroristas a cumprir mínimos"

22 ago, 2014 • José Bastos

Nos 150 anos da primeira Convenção de Genebra, o embaixador António Martins da Cruz afirma, em entrevista à Renascença, que "a privatização do terrorismo" complica a aplicação do direito humanitário.

"É muito difícil obrigar terroristas a cumprir mínimos"

As Convenções de Genebra são as mais participadas, mas também as mais desrespeitadas? Muitas vítimas dos conflitos actuais responderão com um dramático sim.

A primeira Convenção foi adoptada a 22 de Agosto de 1864 para evitar a morte de soldados feridos e fora de combate. As três outras Convenções protegem náufragos em confrontos navais, prisioneiros de guerra e civis.

O embaixador António Martins da Cruz afirma, em entrevista à Renascença, que "a privatização do terrorismo" complica a aplicação do direito humanitário, mas "condenações firmes" devem deixar "portas abertas" para melhorar a vida de prisoneiros e civis.

As Convenções de Genebra são o elemento central do direito humanitário internacional?
Sim, as Convenções de Genebra são, com efeito, as peças mais importantes do direito humanitário internacional. Foi o suíço Jean Henri Dunant que – depois das guerras do século XIX – em 1864, propôs a primeira Convenção de Genebra.  Houve uma conferência em 1864 e criada a primeira Convenção e criada uma instituição fundamental: a Cruz Vermelha. Eu, como diplomata, estive seis anos em Genebra no final dos anos 70 e na primeira metade dos anos 80. Uma das funções que tinha era o do relacionamento com a Cruz Vermelha. Posso contar um episódio que não é muito conhecido dos portugueses, mas foi graças à acção da Cruz Vermelha portuguesa que foi possível libertar quase três mil prisioneiros timorenses. Libertar da ilha de Ataúro e das prisões da Indonésia estabelecidas nessa altura. Timor tinha sido invadido em 1975 e foram presos milhares de timorenses. O Governo português, por meu intermédio, pediu à Cruz Vermelha a mediação neste caso e quase três mil foram libertados, entre 1979 e 1985, através da Cruz Vermelha a instituição criada por Henri Dunant que propôs a primeira Convenção de Genebra de direito humanitário.

As Convenções de Genebra são as Convenções que têm a adesão de mais países – 140 dos 192 da ONU – mas as vítimas dos conflitos actuais também podem dizer que são das Convenções mais desrespeitadas do mundo? Minorias na Síria e norte do Iraque são exemplos actuais.
Nas guerras civis é muito difícil a aplicação das Convenções de Genebra que, fundamentalmente, definem o tratamento de prisioneiros de guerra e a também protecção dos civis. Ou seja, o direito humanitário internacional aplicável a conflitos armados para proteger civis. Há várias Convenções de Genebra, vários protocolos, mas é muito difícil convencer forças que usam meios militares, mas que não são Estados, a aplicar o direito internacional. Esse é o grande drama que temos, hoje em dia, no Médio Oriente, na Síria, no Iraque, com este novo auto proclamado Estado Islâmico (EI) ou como tínhamos, e continuamos, a ter com a Al-Qaeda. No fundo, estas forças terroristas estão privatizadas no sentido em que, pela primeira vez, são forças que não têm a definição do Estado como primeiro objectivo. Portanto, é muito difícil obrigar essas forças a cumprir os preceitos do direito internacional, quer no que respeita a prisioneiros de guerra, protecção de civis, quer à protecção de observadores, civis independentes como jornalistas que cobrem esses conflitos.

Mas, fazer cumprir, é justamente o desafio para a comunidade internacional, os países que subscreveram esse conjunto de normas.
É verdade. Só há uma maneira de convencer essas forças a aplicar o direito internacional: pelo diálogo. Tentando dialogar com essas forças e tentando que cumpram um mínimo básico. Esse mínimo básico é o respeito pelo direito humanitário internacional e pelas próprias Convenções de Genebra. A Cruz Vermelha Internacional faz disso a sua maior força. Ou seja, com os dois lados em conflito nunca discute quem tem razão. O que lhes diz é: ‘cumpram umas normas básicas para proteger os prisioneiros de guerra e para proteger os civis desarmados que não são culpados do conflito’.

Mas em casos presentes, como a perseguição a minorias ou na decapitação de um jornalista, esse diálogo é, ou não, virtualmente impossível?
Diria que é completamente impossível. Não é só virtualmente. Portanto, é preciso condenar. Condenar com firmeza esse tipo de acções. Não só a decapitação do jornalista norte-americano como condenar a própria perseguição das minorias religiosas na região, sobretudo dos católicos e cristãos que já obrigaram o Papa, por uma das raras vezes que isso acontece nas últimas dezenas de anos, a sair da neutralidade que o Vaticano mantém nestas questões. É preciso condenar, mas é preciso também saber manter portas abertas e deixar espaço para a Cruz Vermelha Internacional tentar melhorar a situação de prisioneiros de guerra e civis. Ou seja, a condenação que tem de ser firme e forte não pode fechar portas. Temos de saber deixar ficar portas abertas para que organizações - como a Cruz Vermelha – procurarem fazer cumprir o mínimo destas convenções humanitárias.

Parte da crise actual do direito aplicável na guerra resulta do argumento de que já não é possível distinguir visualmente civis de combatentes. O direito não acompanhou a tecnologia?
Mais do que uma evolução tecnológica, o que se trata é, como assistimos muitas vezes, por exemplo, na antiga Jugoslávia, na Bósnia-Herzegovina, no Kosovo, no Afeganistão e, infelizmente, agora em Gaza é tratar-se de uma guerra urbana. É uma guerra com o cenário assente em espaços urbanos onde é muito difícil fazer a distinção entre combatentes e populações civis. Por isso, são feitos esforços para se tentar aperfeiçoar, por um lado, o direito humanitário, e, por outro, a estreita margem de possível intervenção de instituições como a Cruz Vermelha ou o Crescente Vermelho internacional. É muito difícil. Nós que defendemos os princípios do Direito e o Estado de Direito temos de procurar sempre, em todos os casos, que este tipo de organizações possam cumprir a sua função. A preocupação tem de ser, na mesa de negociações – que sempre existe, sejam públicas ou privadas, há sempre pontes de diálogo possíveis -  fazer com que a Cruz Vermelha e as organizações semelhantes, mas sobretudo a CV, possam invocar o direito humanitário para tentar proteger os civis e os prisioneiros de guerra.