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Joaquim Azevedo

"Temos práticas muito indecentes das empresas em relação às famílias"

11 jun, 2014 • Joana Costa

Incentivos às famílias com mais crianças estão a ser estudados pela comissão que vai propor medidas pró-natalidade. O objectivo é "remover os obstáculos para que os portugueses tenham mais filhos", diz o coordenador.

"Temos práticas muito indecentes das empresas em relação às famílias"

Uma semana antes de a Concertação Social debater as questões da natalidade e conciliação entre a vida profissional e familiar, a Renascença falou com Joaquim Azevedo, presidente da comissão que está a estudar medidas que combatam a falta de nascimentos em Portugal. Os resultados serão apresentados no início de Julho. Mas há já uma filosofia: "remover os obstáculos para que os portugueses tenham mais filhos".

Preside à equipa que estuda medidas que favoreçam a natalidade. Quando espera tê-las prontas?
Termina no fim deste mês o nosso prazo e no início de Julho vamos apresentá-lo [ao Governo]. Depois, logo se verá a sua divulgação.

As previsões apontam para que Portugal perca três milhões de habitantes em meio século. Que riscos corre o país?
São riscos de insustentabilidade óbvia. Com uma descida de três milhões de pessoas significa que onde hoje estão três passarão a estar duas – e com tendência a serem cada vez menos. Nos últimos anos, a tendência decrescente tem sido mais grave e isso põe-nos problemas muito delicados de insustentabilidade. O país não é solvente. A pequena franja que trabalhará dificilmente suportará um país constituído maioritariamente por pessoas idosas.

Em que sentido irão as vossas propostas?
Medidas no plano laboral, fiscal, da conciliação do trabalho-família, dos incentivos à família, tudo isso vai ser objecto de intervenção da nossa parte muito cuidada. Vamos apelar a uma forte participação de diferentes intervenientes, uma vez que esta problemática requer a intervenção de muitos actores sociais (autarquias, empresas, governos). E por muito tempo. Não é um problema de um partido apenas: é uma questão central que o PSD trouxe para a agenda, mas que vai implicar todos os dirigentes políticos dos próximos anos. Estamos também a procurar que essas medidas tenham impacto directo, imediato e concreto na sociedade portuguesa.

Pode ser mais específico? Por exemplo, a nível fiscal, o caminho poderá passar pelo princípio "mais filhos, menos impostos"?
Os inquéritos do INE e das associações que estudam estes problemas dizem-nos que os portugueses querem ter mais filhos. O que temos é de remover os obstáculos com que os portugueses se defrontam para terem mais filhos. As nossas medidas têm muito a ver com esse foco. Remover obstáculos também do ponto de vista fiscal, claro que sim. Porque uma família que hoje tem um, dois, três ou quatro filhos é claramente prejudicada por ter mais filhos. Não queremos beneficiar. Queremos é que se faça justiça porque tem que ter uma casa maior, tem de gastar mais água e luz. A sociedade deve olhar para essas famílias com o necessário carinho para que toda a família (pais, filhos) não se sinta prejudicada. Os obstáculos são também de natureza laboral, têm também que ver com o acesso à educação, às creches. Têm muitas frentes e é nelas todas que gostávamos de intervir.

Há quem defenda que a lei laboral não incentiva a natalidade. Na próxima semana, a Concertação Social vai debater as questões da natalidade e conciliação entre a vida profissional e familiar. O que acha que devia mudar? Poderá passar pela flexibilização dos horários de trabalho, por exemplo?
Sim, sem dúvida. Mas o que importa colocar em cima da mesa desde logo é a questão cultural dos nossos empresários. É preciso que as empresas valorizem o facto de haver mulheres e pais que têm filhos e acarinharem isso e não colocarem permanentemente  obstáculos e muitas vezes o facto de uma gravidez de uma mulher conduzir ao seu despedimento. Temos práticas muito indecentes das empresas em relação às famílias. A questão da jornada contínua, a questão do part-time ou do teletrabalho são medidas específicas que vamos colocar em cima da mesa. Mas é preciso trabalhá-las e creio que o Fórum da Concertação Social estar a fazê-lo é muito relevante.

Qual o impacto financeiro das medidas que o seu grupo de trabalho irá propor?
Sabemos que estamos numa conjuntura que não é muito favorável. Mas o que entendemos é que o país não pode dar sinais ao contrário. Temos dado bastantes sinais contrários à promoção da natalidade. Nas escolas ensina-se permanentemente aos miúdos como não ter filhos. Estamos focados no "não", temos de nos focar no "sim". Como ter filhos, como os educar convenientemente, com programas de educação parental.

Todas as medidas vão chocar com a situação de fraco crescimento e alto desemprego, que são desincentivos para o aumento da natalidade. Como se contorna esta situação?
Temos consciência das dificuldades, nomeadamente dos níveis de desemprego que o país tem e do nível de incerteza que nos rodeia, penalizando particularmente as pessoas mais jovens. Não vamos embandeirar em arco e pensar que por mero voluntarismo é possível pôr de pé uma política de promoção da natalidade. É impossível. Mas mesmo no período das "vacas gordas", a natalidade desceu nestes últimos 30 anos. A questão é mais vasta.

Se as medidas forem adoptadas, em quanto tempo é que considera que a situação pode ser invertida? Isto é trabalho para quantas gerações?
É muito difícil inverter uma tendência de 30 anos em dez. Em primeiro lugar vai ser difícil travar esta descida. E nos últimos três anos ela tem vindo a descer abruptamente. Depois, progressivamente, favorecer a recuperação que vai demorar décadas. Tem de haver um esforço contínuo e de vários partidos e de todos os governos com forte implicação da Assembleia da República e da Presidência da República. Tem que haver compromissos claros nesta matéria e que se devem manter ao longo dos anos independentemente dos governos.

Por que é que todos os governos elegem a natalidade como uma prioridade e depois nada é feito?
Não é verdade que tenham elegido a natalidade como prioridade. Não conheço nenhum Governo até hoje que o tenha feito.

O governo de José Sócrates criou o cheque-bebé...
Mas não era uma prioridade do governo, era uma medida. Nunca foi uma prioridade e isso é que é grave. Os governos até hoje não tomaram a questão como prioritária. Andaram a tomar medidas avulsas, mas isso não é estabelecer nenhuma prioridade. Foi muito mais prioritário recuperar escolas, ou fazer escolas novas, mesmo sabendo que a população estava em grande decréscimo.

[Notícia actualizada às 22h00. A reunião da Concertação Social, prevista para esta quinta-feira, foi adiada para a próxima semana]