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Crónica

O hábito que o mar criou

20 abr, 2014 • André Rodrigues

Aqui toda a gente se conhece e, quando uma tragédia se abate sobre as Caxinas, a vila torna-se uma imensa família, solidária na dor e na memória de tantas outras histórias passadas sem final feliz.

O hábito que o mar criou

Ali ao fundo da Rua da Praia, nas Caxinas, um mar de calma brilha ao sol das três da tarde. À soleira da porta, vizinhos juntam-se para a saudável coscuvilhice sobre as peripécias da terra. Misturam-se os que caminham debaixo do calor ameno de um Domingo de Páscoa e os que todos os dias matam as horas lançando cartas à mesa ou combinando dominós. Misturam-se os que ainda se fazem ao mar para trazer sustento e os que já deixaram a faina, preenchendo conversas intermináveis das memórias das aventuras do mar. Histórias de coragem e de sorte.

Quantos daqueles homens de expressão enrugada e falar engraçado tiveram a vida por um fio? São eles a voz da experiência. São eles que, numa fracção de segundos, tantas vezes foram surpreendidos mas escaparam para contar a história. Outros não tiveram essa sorte.

Mas aqui toda a gente se conhece, e quando uma tragédia se abate sobre as Caxinas, a vila torna-se uma imensa família, solidária na dor e na memória de tantas outras histórias passadas sem final feliz. A igreja do Senhor dos Navegantes, ali mesmo à vista do mar, é sempre pequena demais para tanta gente. Se aquelas paredes falassem, contariam episódios de fervor religioso, de um entusiasmo tão próprio das gentes daquela terra, a contrastar com a impotência, o choque, o pranto imenso daqueles que, de um momento para o outro, vêm os seus partir.

O naufrágio do Mar Nosso, na passada quinta-feira ao largo das Astúrias, trouxe de volta essa tristeza às ruas das casas baixinhas. É a sina de uma vida onde a escolha é pôr a vida em perigo para ganhar o pão ou não ter o que comer à mesa. É a vida de quem sabe que parte, mas nunca sabe se regressa.

À porta da capela mortuária, no centro paroquial das Caxinas, há tantos homens e mulheres que se cobrem de negro da cabeça aos pés. Há tanta gente que enxuga as lágrimas, tentando – uma vez mais – encontrar explicação para mais um acidente que tira a vida aos filhos da terra, que priva os pais dos filhos, que rouba os maridos às mulheres. Que engrossa a lista dos que no mar procuravam sustento e no mar perderam a vida. E já são perto de uma centena. Pelo menos desde que o padre Domingos Araújo é pároco das Caxinas, há quase 40 anos.

O dicionário da língua portuguesa diz que o hábito é um “comportamento que determinada pessoa aprende e repete frequentemente, sem pensar como deve executá-lo”.

Infelizmente para esta gente, as mortes no mar tornaram-se uma constante. Toda a gente gostaria que cada perda fosse sempre a última. Por outro lado, ninguém duvida que, mais cedo ou mais tarde, a freguesia voltará a juntar-se em mais uma onda de comoção que, apesar de tudo, não põe em causa a fé desta comunidade.

Este ano, a Páscoa foi diferente para os caxineiros. A experiência da morte e a crença numa vida que se prolonga para lá da existência terrena é um desafio para quem fica e terá de se habituar a viver o resto da vida na ausência física dos seus mais próximos.

E os crucifixos dourados que sobressaem do traje negro não são meros amuletos. São a certeza daquilo em que sentem necessidade de acreditar para enfrentar os perigos e as dificuldades do dia-a-dia.

Os caxineiros orgulham-se de ser a maior comunidade piscatória do país. Gostam de dizer que o mar é deles. Mas, quantas vezes, o mar não quer nada com eles.