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Os filhos da Guerra Colonial ainda têm perguntas

01 abr, 2014 • José Pedro Frazão

Quarenta anos depois, os filhos de ex-combatentes revelam como a guerra os marcou em casa. A jornalista Catarina Gomes reuniu em livro 12 histórias. E assume a sua própria experiência e as perguntas que não chegou a fazer ao seu pai.

Os filhos da Guerra Colonial ainda têm perguntas

Os jornalistas não devem ser a notícia, certo. Mas há momentos em que as histórias relatadas cruzam-se com os seus próprios trajectos de vida. Catarina Gomes começou por escrever um artigo sobre uma investigação sobre os filhos de ex-combatentes, desenvolvida pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra. A jornalista do “Público” decidiu aprofundar o tema que tão bem conhecia lá de casa. Nasceu "Pai, tiveste medo?", agora nas bancas.

Tratas este tema "por tu", como dois jornalistas se tratam entre si. Conseguiste distanciar-te?
Não. Aliás, a razão que me levou a escrever este livro foi precisamente uma ligação muito intima e emocional com o tema. Caso contrário não teria o mínimo interesse em escrevê-lo. São 12 histórias. Eu seria a 13ª. Eu não conto a minha história abertamente, dou uns laivos da minha relação com o tema, pelo facto de ser filha de ex-combatente. O meu interesse em ouvir estas pessoas é o facto de partilhar essa realidade.

O livro era importante para perceber que havia outra gente "no mesmo barco"?
Sim. Quando escrevi sobre a investigação do CES da Universidade de Coimbra, decidi associar-me pela primeira vez ao texto. É suposto um jornalista estar fora daquilo que escreve, mas quis colocar-me dentro. Fiz um testemunho pessoal a dizer que também sou "filha da guerra". Tenho em comum uma série de coisas com estas pessoas, álbuns de fotografias em casa, as estatuetas de africanos trazidas desse tempo longínquo. Não tinha percebido que, de facto, havia ali uma geração de pessoas que, de alguma forma, tinham tido esses objectos em casa, que, no fundo, eram pretexto de conversa sobre a guerra. É uma época quase mítica da vida dos nossos pais. Especial, para o bem e para o mal. O meu pai morreu cedo e nessa altura não tinha nascido ainda em mim esta curiosidade. E quando escrevi este artigo pensei:" gostava tanto de lhe fazer tantas perguntas agora". E não o tinha cá. E fiquei triste. Eu não tenho ninguém a quem perguntar estas coisas. Mas há pessoas que ainda têm o seu pai. Gostava de saber se perguntaram sequer, se não responderam, se houve silêncio. Quis perceber como é que este tema foi tratado em casa por parte dos filhos que herdam de alguma forma este pai, produto acabado de um tempo em que não existiam.

A guerra não é um pouco incontável? Há cada vez mais livros que tentam contar estes fragmentos da guerra, juntando-os como se fosse um puzzle que nunca mais acaba...
Exactamente. O título do meu livro é: "Pai , tiveste medo?", uma pergunta completamente infantil, porque obviamente todos os pais terão tido medo. Mas quis que assim fosse, como mote para outras perguntas que se podem fazer, algumas que eu não fiz. " Tiveste medo de matar ou de morrer?" , " mataste alguém? ", que cheguei a perguntar. Eu acho que essas perguntas se deveriam fazer agora enquanto adultos. Obviamente que os pais nunca vão responder, é suposto haver silêncios. Se calhar disse-se demasiado pouco. Gostava que este livro fosse um convite a que este tema voltasse às conversas agora que já somos todos adultos. A guerra chegou a muitos destes filhos ao longo do seu processo de crescimento, brincando com a bandeira da companhia. Agora já estamos todos na casa dos 30/40 anos. E eu penso que o assunto não está encerrado. Gostava muito de fazer perguntas ao meu pai e não posso. Porque é que vocês não fazem? É um bocadinho essa a ideia deste meu livro.

O assunto não está encerrado.
Não, de todo. Remontando à minha experiência, a minha mãe passou metade da comissão na guerra com o meu pai. Ela é um repositório indirecto desta experiência vivenciada pelo meu pai. Mas eu ando a escrever este livro há dois anos e há coisas que ela ainda não me contou. Ainda na semana passada revelou-me que, acabados de casar, chegaram ao Leste de Angola. No dia 26 de Abril de 1974, tinham morrido 17 homens do batalhão do meu pai que os foi identificar. Essa história sempre tinha ouvido de forma vaga. A minha mãe disse-me que esses homens estavam completamente mutilados. Um dos homens do pelotão, o maior da companhia, estava carbonizado. Foram imagens que o meu pai contou à minha mãe e que lhe tiraram o sono durante semanas. Esta é uma história que a minha mãe só me contou há umas semanas, já depois de ter escrito este livro. É um fragmento de uma cena de uma coisa que nunca me foi contada. Era importante conhecer um bocadinho dessa experiência de guerra passada para os filhos, para que percebam esta situação completamente extrema que de alguma forma moldou os pais que tiveram.

Num dos testemunhos do livro, há uma filha que fica surpreendida com revelações do pai em vídeo para memórias da terra. Alguém que "não chora, não conta" desaba perante estranhos. O contar ou não contar vai mudando com o tempo?
Sim, a guerra foi sendo filtrada, adaptada a cada etapa ao longo do nosso processo de crescimento. Ao mesmo tempo, esta geração de homens de 60/70 anos cresceu moldada na ideia de que um homem não chora, não conta os seus medos, sobretudo aos filhos. A imagem desse pai forte foi tornada ligeira. Três anos e meio na prisão foram transformados numa história pedagógica, "come lá a sopa que eu passei três anos a arroz e gorgulhos".

Há o pai forte, mas também o pai fragilizado. Há famílias confrontadas com violência doméstica, excessos de álcool , tabaco. É o homem frágil, por causa da guerra, ainda que não saibam os pormenores do que lá se passou.
Exactamente. Ainda que o próprio não o assuma. Uma das situações é de uma filha cujo pai que sofria de stress de guerra, embora ele nunca o tenha admitido. Ele  passou uma vida inteira a agredir a mulher e os filhos, depois da guerra, a acordar a meio da noite a gritar: "eu vou matar os pretos". Quando a filha sugeria ajuda , ele dizia: "não sou maluco, eu sou um homem e fui à guerra". Viveu toda a vida assim, atormentado, nunca falou do que se passou e nunca ninguém lhe bateu a porta a ajudar.

O que aprendeste sobre as companheiras destes homens?
As mulheres surgem aqui quase num plano de igualdade, numa barreira para o pai que passou por aquilo que não pode contar tudo aos filhos. Há o caso da Alexandra em que a mãe dizia: "desculpa o teu pai porque esteve na guerra". Era como explicar o pai às crianças, descodificar para que os filhos relativizem o pai que os marcou.

Até que ponto é importante para os filhos conhecer a experiência dos pais até ao ínfimo detalhe?
Não digo que estes pais são hoje o que são devido à guerra. Mas não terá havido dois anos de uma situação tão extrema para eles. Ficou lá no passado, mas certo é que, por todo o país, começa agora na Primavera a época dos almoços-convívio de combatentes. Se eles têm esta vontade de se reunirem com estas pessoas com quem estiveram dois anos, longe, quando tinham 20 e tal anos, é porque isto continua a ser importante.

É uma terapia para estas pessoas...
Como diz alguém no livro, são uma espécie de grupos de auto-ajuda disfarçados.