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Entrevista

João Miguel Tavares fez um manual para pais e maridos que vai de "amor" a "zombie"

19 mar, 2014 • Matilde Torres Pereira

O jornalista e “blogger” escreveu “Manual de sobrevivência para pais e maridos – 112 dicas de A a Z”. “Não sou doutorado em nada excepto em paternidade.”

João Miguel Tavares fez um manual para pais e maridos que vai de "amor" a "zombie"

Desde as guerras conjugais pela arrumação da casa até às razões para ter filhos, “Manual de sobrevivência para pais e maridos – 112 dicas de A a Z” é um livro escrito como uma partilha, em curtas crónicas, das agruras e alegrias de um “pai de quatro” a braços com o novo papel dos homens no espaço doméstico. Numa altura em que se fala em “Inverno demográfico”, este pai, jornalista e “daddy blogger” João Miguel Tavares conversou com a Renascença sobre natalidade, amor e fé. “Hoje divirto-me mais a ser pai, mas no início não tinha piada nenhuma.”

O livro abre com uma citação do “Livro do Amigo e do Amado”, de Ramon Llull: “- Diz-me amigo – disse o amado – terás paciência se eu duplicar os teus sofrimentos? – Sim, desde que me dupliques os teus amores.” É, por acaso, um dos livros que costuma viver na mesa-de-cabeceira do meu marido. Isto é uma coisa de pais de família?
É uma mera coincidência. Conheci esse livro através de um livro do Gonçalo M. Tavares, portanto já é uma citação de uma citação. Essa frase em particular tocou-me muito – numa perspectiva romântico-pirosa – porque, quando tu amas alguém, o prazer que tu retiras do amor supera sempre o desprazer. Não diria dos momentos de ódio – porque eles também existem – mas dos momentos de embate, mais duros e de tristeza. Quando estás apaixonado, tu aguentas as dores, desde que tenhas amores na mesma medida.

Há quem diga que somos a melhor versão de nós próprios quando estamos apaixonados e que podemos usar isso como matriz para outras áreas da nossa vida.
Isso só se aplica, provavelmente, quando falamos naqueles primeiros seis meses de “assolapanço” total, em que andas constantemente atrás do outro, e, da mesma maneira que os pavões abrem a sua cauda, tentas encantar a outra pessoa. Mas isso não dura sempre. O verdadeiro amor é o que encontra prazer na rotina. Sobretudo no meu caso, que tenho uma relação mesmo muito longa. Comecei a namorar com a minha mulher quando tinha 18 anos e acabei por me casar com ela, que é uma coisa que já não se usa nos tempos modernos. O que muitas vezes me “encanita” um bocadinho é quando tu falas com pessoas que acham que isso é uma impossibilidade. Acham que tu estás de alguma maneira a ser complacente contigo próprio ("Encostaste-te, acomodaste-te") e tu dizes: "Não, não me acomodei nada, desculpa, gosto mesmo, não tenho culpa!”.

Mas não estamos muito habituados a perceber o amor, hoje em dia, nos termos em que o está a colocar.
Isso é a nostalgia de um passado que, se calhar, nunca existiu. Dizemos: “as pessoas hoje em dia divorciam-se muito”. E é verdade, divorciam-se demais, mas é porque o amor passou a ser uma coisa importante. Agora, a partir daí, o mundo também não pára, e temos de conseguir evoluir. E é verdade que vivemos numa civilização muito autocentrada, em que é muito fácil seres feliz sozinho: hoje, tens internet banda larga e vais até os 80 anos entretido em tudo. Depois, o facto de seres mais autocentrado pode dificultar a tua vida em comum, em que há sempre uma dimensão muito profunda de abdicação. Ninguém se casa antes de acabar o curso, de ter um emprego estável, convém ter dinheiro para comprar uma casa… De repente, estás a olhar para ti, tens 29 anos e estás-te a casar. Já tens um histórico de mais de dez anos a viver sozinho, com os teus próprios hábitos e é muito difícil sair daí para depois te adaptares a uma outra pessoa.

No livro fala nas "mommy bloggers". Tem a perfeita noção que é um "daddy blogger" total?
Sim. Tentando não ser total, mas sou demasiado “daddy blogger”. Quando comecei a escrever sobre a família, muita gente gozou comigo e disse que tinha encontrado um nicho de mercado. Supostamente, escreves no “Público”, devias ser um semi-intelectual e estar a falar sobre a família... isso é uma coisa um bocado foleira. Existe muito esse discurso. Lamento imenso, mas gostava que o Pacheco Pereira me explicasse como foi a relação dele com os filhos enquanto eles cresciam, gostava que o Gonçalo M. Tavares me explicasse como conseguiu escrever 68 livros ao mesmo tempo que tinha três filhos para criar. Mas parece que o discurso sobre a família só pode vir envolto em literatura – fazes um romance em que a tua vida privada está de alguma forma reflectida, mas não falas disso sem esse filtro artístico. Faz-me muita impressão.

O formato do seu livro é uma reacção a esse estado de coisas?
As crónicas saíram-me muito naturalmente. Como tudo, foi um acaso, em que fui convidado para escrever para uma revista – já escrevia sobre política nessa altura – que tinha outro registo. Decidi escrever sobre os filhos. Depois tornou-se um hábito e uma coisa muito prazerosa – até porque dá para desabafares para o computador. É uma coisa de que, numa fase da minha vida, precisava mesmo muito. Hoje em dia tenho uma paternidade mais pacificada, ou seja, divirto-me mais a ser pai. Mas no início não tinha piada nenhuma.

Muitos pais não se sentem minimamente à vontade para falar sobre essas coisas?
É uma questão cultural. Mas neste momento é uma questão culturalmente absurda. Há 30 anos, o homem certamente não estava em casa com responsabilidades domésticas. Desde o homem “sapiens sapiens”, houve centenas de milhares de anos em que a função do homem era caçar um mamute. Não tinha nada a ver com a criação dos filhos, que é uma coisa recentíssima. Daí o título do meu livro, "Os homens precisam de mimo": as pessoas não dão suficiente atenção a como o papel do homem também foi reconfigurado. Não é por estalar os dedos que passo a ser uma fada do lar!

Esse novo papel do homem devia estar reflectido na lei?
É evidente que precisávamos de ser mais apoiados. Quando as pessoas falam do "Inverno demográfico", têm toda a razão. A questão da natalidade já se coloca há tempo suficiente para ter havido uma reacção, e que não seja os “cheques bebé”, como no tempo de José Sócrates. Gostava que fosse reflectido a sério no IRS, por exemplo, no IMI. Gostava que o que pagas por uma casa reflectisse a quantidade de pessoas que estão lá dentro a viver. É evidente que não é igual eu ter uma casa de 220 metros quadrados porque lá estou eu, mais a minha mulher, mais quatro filhos, ou eu ser um nababo e ter 220 metros quadrados e um jacuzzi lá dentro, uma piscina, e sou solteiro.

Muita gente dirá que isso são opções de estilo de vida…
Mas tu precisas de filhos no país, certo? Então põe esse senhor, que se diverte imenso, a pagar mais! Aliás, ele não precisa de pagar mais, eu é que preciso de pagar menos! Mas também não acho que seja uma coisa que só se resolva do dia para a noite porque se despeja mais dinheiro em cima do problema.

Como é que gere a questão da privacidade da família nos blogues e nas redes sociais?
Da forma mais relaxada possível. Discuti isso muito com a minha mulher. Não tenho problemas nenhuns em colocar no blogue fotografias dos nossos filhos. Tem a ver com um certo optimismo em relação à humanidade. Se achares que há um pedófilo em casa esquina, tu paralisas e, claro, não metes nada. O problema é que a família desaparece do espaço público, a não ser nas revistas cor-de-rosa, e então cada vez que temos a foto de uma família, temos as crianças com as caras desfocadas. É uma coisa que me perturba muito. É uma desnaturalização de uma coisa que sempre foi natural. A minha família é um espaço central da minha vida. Não sou doutorado em nada excepto em paternidade.

O que diria a um casal que quer muito ter filhos mas tem medo de o fazer por falta de dinheiro?
Tenho uma grande resistência em tu estares a impor aos outros a tua visão das coisas. Estas “112 dicas de A a Z” são partilhas. Quem sou eu para me estar a colocar no papel de um casal que anda a fazer as contas ao final do mês e que acha que não tem condições para ter filhos? Só posso respeitar isso. O máximo que posso dizer é: espero que adores a tua mulher. Aí sim, aí sou mais conservador, não acho que seja indiferente crescer num casal divorciado ou numa família em que os pais estão casados e gostam muito um do outro.

Equipara um casamento a viver em conjunto, por exemplo?
Se me estás a perguntar se, com um sacramento que se chama matrimónio, isso te dá um elo mais profundo de ligação, é uma pergunta muito complexa. Provavelmente achava mais isso quando me casei. Isso tem a ver com as tuas próprias atribulações na fé, o que também dava uma longa conversa.

O livro contém um parágrafo sobre a bondade. É uma palavra que este Papa tem sublinhado muito quando fala da família. Onde é que a bondade entra na sua vida?
Sou uma espécie de “católico ateu” (risos), uma nova categoria. Interesso-me pelo catolicismo mesmo que Deus não exista. Mas é uma posição ridícula, que São Paulo dizia que é impossível. Vivo e sou um permanente paradoxo, mas, ao mesmo tempo, vivo numa grande fidelidade com a minha consciência. Estou, como 90% das pessoas, a adorar este Papa. Ele está a ter a atitude mais cristã que tu podes ter, que é perceberes que aquilo que a tua fé tem de mais belo é o acolhimento e não a prescrição. E é por isso que digo: isto [o livro] é uma partilha. É assim que eu faço, se quiseres, vem aqui. Porque não te podes demitir de pensares por ti próprio e de fazeres aquilo que queres.