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Dias inteiros sem ter quem ouça

23 dez, 2013 • Matilde Torres Pereira

Uma mulher que vive num silêncio desamparado durante seis dias. Um homem bem-falante que fala quase sempre com ninguém. Esta é uma história de solidariedade.

Dias inteiros sem ter quem ouça
A casa de Luísa Guerra está impecavelmente arranjada e decorada para o Natal, como se estivesse sempre pronta para receber visitas. Mas a realidade não é assim: aos 80 anos, passa quase todos os dias sozinha. A excepção acontece às quartas-feiras, com a visita de Henrique Durão, 61 anos, um voluntário que todas as semanas tira uma manhã para conversar com Luísa Guerra. Desloca-se à Torrinha, em Lisboa, para ouvir palavras que Luísa não partilha com ninguém durante seis dias. Na quadra natalícia, a solidão é acentuada, mas as visitas de Henrique proporcionam o que falta nos outros dias.

Antes das visitas semanais, Luísa Guerra vivia um luto prolongado depois da morte do marido. Quando Henrique surgiu, o desgosto não desapareceu, mas despontou o aconchego de uma amizade em construção. Aos poucos, o voluntário conseguiu convencer Luísa Guerra a voltar a pegar nas agulhas para fazer renda, que já tinha deixado. Na cozinha, passou a viver um peixinho de estimação, ideia de Henrique para estimular a viúva a ter alguém de quem cuidar. 

"A minha vida mudou, porque eu não falava com ninguém. Fico mais feliz quando chega a quarta-feira. É um dia especial para mim. Ele é como família, até mais. Ele alivia a minha tristeza", conta Luísa Guerra. "É muito bom ter alguém que vem cá. Conversamos sobre a nossa vida: conto as minhas histórias, mostro-lhe as minhas rendas, mostro os meus crochets." 

Henrique também sente a "expectativa da quarta-feira". "É um ponto alto da semana para ambos. Falamos de tudo um pouco, do período em que a Dona Luísa era jovem e que vivia no Alentejo. Falamos muitas vezes de gastronomia alentejana, trocamos histórias, damo-nos a conhecer."

Para Henrique Durão, a ideia de fazer voluntariado surgiu quando se reformou e sentiu que tinha de se ocupar com utilidade. "Pensei que podia ser útil a desenvolver este tipo de actividade. E há um grande retorno: não é só prestar um serviço - traz um prazer interior e recebemos muito em troca."

Os dois conheceram-se por intermédio da associação Raízes, que trabalha maioritariamente com crianças e jovens, mas que, durante o trabalho no terreno, notou a necessidade de acompanhar a população mais idosa. A associação promove acções de formação para voluntários junto de seniores e acompanha o trabalho que é feito nas visitas. Actualmente, tem 11 voluntários a fazer visitas semanais a pessoas que vivem em isolamento.

Ouvir mais o coração do que os cansaços
Maria Clara, de 79 anos, decidiu ser voluntária quando se reformou. "Cheguei a casa, limpei a casa, arrumei os papéis, fiz tudo o que tinha a fazer e pensei 'agora o que é que eu faço?'. Tinha de ir fazer qualquer coisa." Faz parte da equipa de "visitadoras", que são mais de vinte voluntárias da paróquia do Campo Grande, em Lisboa, que prestam apoio domiciliário a quem vive sozinho. Maria tem a responsabilidade de atenuar a solidão em quatro casas.

"Numa das casas que visito há uma mãe de 89 anos, dependente, com mobilidade zero, e uma filha esquizofrénica, com um tipo de doença agressiva e descontrolada a maior parte das vezes. É uma visita que deixa muitas marcas, porque muitas vezes sinto-me impotente para ajudar. São visitas difíceis, mas necessárias." 

Maria Clara acaba por fazer muito mais do que apenas visitar. Vai às finanças tratar de qualquer assunto que seja preciso, faz companhia nas consultas médicas, recebe chamadas a toda a hora e cansa-se - mas de um jeito que a conforta. "Para mim, ser voluntária é ouvir mais o coração do que os cansaços. E como o faço de coração, estou receptiva a tudo."

Numa das casas onde se leva, Maria encontra a profundidade das boas conversas. "Visito um senhor viúvo muito culto, com uma imensa bagagem e conversamos sobre as coisas mais diversas. Sempre que ele nos leva à porta para nos despedirmos, diz 'muito obrigada por terem vindo, muito obrigado, minhas amigas'. Desfaz-se em agradecimentos, quase beija o chão que pisamos. É muito bom. Ele diz-me assim 'sabe, é que eu não falo com ninguém, estou sempre à espera que vocês cheguem, porque eu não falo com ninguém'."

Na semana do Natal, as visitas continuam. Maria Eugénia Alves, de 79 anos, também é voluntária da paróquia do Campo Grande e faz visitas há 11 anos. "São pessoas que realmente estão sós e que nós sentimos que ficam felizes, a quem realmente damos um apoio moral. Muitas vezes ajudamo-las a ter outra dinâmica, a não estarem tão pessimistas", refere.

"É um voluntariado que nos gratifica. Ensina-nos muito, ajuda-nos muito", diz Maria Eugénia Alves. "Muitas vezes, tenho estado em situações em que é como se me estivesse a ver a um espelho: olho aquela pessoa que estou a ajudar e estou a ver-me um dia naquela situação. Acho que isso também ajuda a compreender."