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Eugénio da Fonseca

"É ofensivo dizer que os portugueses viveram acima das suas possibilidades"

31 out, 2013 • Mara Dionísio

Em entrevista à Renascença, o presidente da Cáritas Portuguesa diz que o Orçamento do Estado para 2014 volta a penalizar "os mesmos". E confessa o que mais o assusta: "É não saber quando é que isto vai acabar". "Isto" é a austeridade.

"É ofensivo dizer que os portugueses viveram acima das suas possibilidades"
Eugénio da Fonseca contesta a desigualdade: de rendimentos, de distribuição de sacrifícios. "O dinheiro existe, mas está mal distribuído. Tem sido colocado, e às vezes de forma criminosa, nas mãos de alguns", diz o presidente da Cáritas Portuguesa em entrevista à Renascença. Não contesta a necessidade de austeridade, mas faz reparos aos métodos e aos caminhos seguidos: "Continuamos a perguntar-nos se os sacrifícios pedidos correspondem depois às vantagens recolhidas". E Eugénio da Fonseca tem uma certeza: os portugueses não viveram acima das suas possibilidades, mas o Estado sim.



O Orçamento do Estado (OE) para 2014 corta nos funcionários públicos e nos pensionistas. É um Orçamento equitativo nos sacrifícios que pede aos portugueses? 
Nem este, nem os anteriores. Tem-se apostado em Orçamentos que privilegiam o combate ao défice e era mais que razoável que os sacrifícios tão grandes que têm sido pedidos tivessem sido já capazes de resolver uma parte do problema. Pelo contrário, o que estamos a ver é que não está resolvido e daí a necessidade de o Governo acentuar, de uma forma tão drástica, as medidas de austeridade.

Disse anteriormente que o OE para 2014 vai ser "um martírio". Porquê?
O que eu tenho que lamentar é que se continue a pedir os sacrifícios aos mesmos e indo aos rendimentos do trabalho. É notório neste Orçamento que a opção que o Governo fez foi em cortes salariais, em pensões de reforma, e, portanto, em tributar ainda mais os rendimentos do trabalho. Por outro lado, vai desonerar aquilo que é a incidência sobre os lucros. O país está a empobrecer e eu tenho muito receio que a gente possa estar a caminhar para uma situação de pobreza estrutural, pelo menos para muitos portugueses.

Até à votação final global do Orçamento, marcada para 26 de Novembro, ainda há possibilidade de alterar o documento. Que medidas alternativas propõe?
Ver o que é que se pode fazer nos gastos que as parcerias público-privadas estão a trazer ao erário público. Depois ver que estratégias se devem encontrar para, por um lado, vencer a questão da economia paralela. Num dos encontros que tive com os representantes da 'troika', eles disseram que se resolvêssemos o problema da economia paralela não era necessário eles cá estarem. 

Economia paralela que vale cerca de 25% do PIB...
Cá está. Que mecanismo é que o Estado deveria encontrar para vencer esta batalha? Não é fácil, reconheço. Tem que ter o contributo de todos e por aqui também passa outra coisa que quero deixar clara: este combate que estamos a travar no país também não compete só ao Governo - temos todos de estar envolvidos, cada um na graduação das suas responsabilidades.

Manuela Ferreira Leite disse recentemente que, se fosse Governo, rezava para que o Orçamento fosse chumbado pelo Tribunal Constitucional. Se o Eugénio da Fonseca fosse Governo, qual era o seu desejo? 
Eu gostava que não fosse necessário chegar ao Tribunal Constitucional. Eu também às vezes fico muito confuso. Eu sei que a justiça dos homens é uma justiça muito subjectiva - para mim, justiça absoluta é a divina -, porque às vezes não percebo as decisões do Tribunal Constitucional. Talvez a Constituição tenha que ser adequada à situação concreta [que vivemos], porque aquilo também não é Bíblia, não é dogma, e então é bom vermos que Portugal mudou. 

O enorme aumento de impostos não funcionou. O corte da despesa até agora apresentado também corre o risco de não funcionar. O Governo reitera que não há plano B. Todos estes sacrifícios podem ser em vão? 
Continuamos a perguntar-nos se os sacrifícios pedidos correspondem depois às vantagens recolhidas, se há aí uma proporção. Então volto a dizer o que sempre disse desde a primeira hora: há que renegociar o memorando e a dívida.

Por que motivo continua a defender esse argumento?
Acho que não há outra saída - temos de renegociar a dívida. Não venham os nossos parceiros dizer que chegámos aqui por laxismo. Não. O povo tem feito muito sacrifício.

A ministra das Finanças diz que renegociar a dívida não iria resolver o problema...
Eu penso que poderia tornar mais suaves os sacrifícios. É nessa perspectiva. Talvez levássemos mais anos a vencer o tal desiderato que é o défice. O que peço é que talvez a dose do antibiótico possa ser um bocadinho menor para não matar tantos glóbulos vermelhos e para que a pessoa tenha a garantia de poder sobreviver.

Pegando nessa sua analogia do doente e do tratamento, um dos sintomas desta doença é exactamente o desemprego: há cada vez mais jovens qualificados desempregados, por exemplo. As estruturas do Estado, nomeadamente os centros de emprego, estão preparadas para esta nova realidade?
Há que tornar mais próximas essas estruturas. E depois colocar lá mais técnicos ao nível da psicologia, mais técnicos sociais... E há também uma responsabilidade da nossa classe empresarial em ajudar a combater o desemprego: não pode estar só à espera do regresso aos mercados para que haja financiamentos e só quando houver esses financiamentos é que criamos postos de trabalho.

Em Janeiro defendeu o aumento do salário mínimo como uma pedra basilar da coesão social e da protecção dos trabalhadores. Perante as actuais circunstâncias, continua a defender este argumento?
O que eu sei dizer é que não vamos a lado nenhum com uma política de redução de salários e com salários que não resolvam a autonomia financeira das pessoas.

A pobreza tem aumentado. Há falta de dinheiro?
Somos dos países, não sei se o segundo ou o terceiro país, mais desiguais. Quer dizer que o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior. Isso só nos leva a concluir uma coisa: o dinheiro existe, mas está mal distribuído. Tem sido colocado, e às vezes de forma criminosa, nas mãos de alguns. Temos que rever esta questão dos salários escandalosos. Há determinados sectores da administração, mesmo da administração pública, em que a diferença entre os salários mais altos e os mais baixos é escandalosa. 

Teme pelo futuro da coesão social em Portugal? 
Não. Nós não temos coesão social. Havendo a situação que estamos a viver, está comprometida a coesão social. Portanto, não há coesão social. O que eu temo é que possa haver agitação, mais agitação e que essa agitação possa degenerar em comportamentos que só nos prejudicariam. Acho que as pessoas deveriam fazer sentir o seu incómodo, aquilo que estão a sofrer. Não podem ficar amorfas, não podem ficar de braços cruzados. Sim, devem procurar manifestar esse seu desagrado. Agora tudo o que passe da fase da contestação para a agressividade só nos prejudica, porque os prejuízos materiais que muitas vezes causam empobrecem-nos mais. Depois, põem-nos uns contra os outros e nós precisamos de alguma harmonia para poder vencer estas situações. 

Com o aumento do desemprego, os pedidos de ajuda à Cáritas também têm aumentado. Teme que haja uma ruptura na ajuda que consegue dar?
Nalguns casos, já temos essa ruptura. Há muitos que vão à Cáritas e não conseguem ver atendidos os seus pedidos, porque não conseguimos resolver todos os problemas, nem nos compete a nós resolver todos os problemas - nem a nós nem a qualquer outra instituição. Ficamos muito aquém daquilo que são as situações apresentadas e muitas vezes temos que priorizar. Claro que se uma pessoa aparece a dizer que tem fome, nenhuma Cáritas pode dizer 'não é comigo'.

Os portugueses continuam a ser solidários?
Sim, são. Claro que já se nota alguma dificuldade. Eu receio que venha a abrandar essa solidariedade por força destas medidas cada vez mais agressivas de sacrifícios que estão a ser pedidos, mas o nosso povo é muito generoso. 

Comunga do argumento de que os portugueses viveram acima das possibilidades? 
Não, não, não.

Porquê
Isso é generalizar e é ofensivo. Muitos portugueses foram aliciados de forma desonesta por gente que estava muito bem preparada, que conhecia as regras e apanhava gente incauta, apanhava muitas vezes gente iletrada que não via as célebres letras pequeninas. Que se diga que o país viveu acima das suas possibilidades, aí sim, a começar pelo despesismo do Estado. Felizmente este Governo, há que se dizer com justiça, tem vindo a reparar alguns destes devaneios. 

O que é que mais o assusta no futuro?
É não saber quando é que isto vai acabar. Até se falou de um mês para se regressar aos mercados - esse mês já lá vai e ainda continuamos a falar de austeridade agressiva. O que me assusta é que valia a pena fazer sacrifícios, e o povo está a dar provas disso, desde que víssemos um horizonte.

Falta discurso de esperança? 
Isso até serve para mim, porque muitas vezes dou por mim a pensar 'mas tens de mudar o teu discurso, tens de ser mais positivo'. Se talvez estendêssemos mais o período do pagamento da dívida, aliviássemos mais as medidas, talvez as pessoas pudessem fazer emergir mais essa esperança. Receio é que haja gente que fique submersa no seu desespero, no seu desacreditar, que amanhã, mesmo que a gente lhe diga 'acorda que a madrugada já surgiu, isto já mudou', ela diga 'já não é possível, já não acredito'.