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Um homem no limite

30 out, 2013 • Matilde Torres Pereira

Nelson Arraiolos deve dois mil euros ao Estado e não consegue pagar. Escreveu uma carta ao Presidente da República, mas diz que não obteve resposta. Decidiu protestar: foi a Belém declamar um manifesto junto à residência de Cavaco Silva.

Um homem no limite

O que faz um homem de 41 anos, desempregado, sem quaisquer rendimentos, doente e ainda em dívida para com a Segurança Social? Nelson Arraiolos, que colocou a interrogação a si próprio, encontrou uma resposta: escreve-se uma carta aberta ao Presidente da República para apelar à isenção de impostos e à suspensão das dívidas enquanto se mantiver a situação de desemprego. E pede-se um Estado cumpridor no texto que se envia.

Angustiado por ter volta a viver à custa dos pais, que o tiveram de voltar a receber em casa no Bombarral, Nelson Arraiolos decidiu "levantar a voz para [mostrar] as injustiças sociais que estão a suceder em catadupa". "Somos aquela espécie de dano colateral como existe nas guerras, quando uma bomba atinge um bloco de apartamentos e morre gente indefesa. É assim que eu me sinto."

Esta quarta-feira, esteve diante da residência oficial de Cavaco Silva, em Belém, onde declamou um manifesto. "Caros desempregados sem rendimentos, sabemos o que é a miséria, a dor, o choro ao não poder corresponder com as nossas obrigações; sabemos que o nosso futuro será só um prolongamento do nosso presente; sabemos que o actual Estado nos condena à indigência", começou por pronunciar.

"Não haverá nunca justificação para que crianças não tomem o pequeno-almoço. Não haverá nunca justificação para que idosos comam de caixotes do lixo. Apelo a que sigam o meu exemplo e que declarem publicamente que, enquanto as obrigações do Estado não forem cumpridas, nós não pagaremos quaisquer impostos." O manifesto foi lido junto de vários amigos, alguns também sem emprego, que se deslocaram a Belém.

A situação de Nelson Arraiolos surgiu em 2008, quando deixou de explorar um café que detinha para ingressar num "call-center" de uma empresa de telecomunicações. Deu baixa dessa actividade no Portal das Finanças, mas, sem se aperceber, a operação foi feita de forma incorrecta. Demorou mais um mês resolver a situação e, no entretanto, a Segurança Social continuou a contar o tempo. Daí a dívida que não consegue pagar e para a qual apenas foi alertado passados cinco anos do ocorrido – em Julho deste ano. São dois mil euros que não consegue pagar. Em 2011, há quase três anos, foi dispensado da empresa.

"Tenho de admitir que foi um erro da minha parte, mas é um erro também das Finanças permitir fazer uma operação no site que depois não tem seguimento. Revolta-me."

"Não é só para mim"
Nelson Arraiolos inspirou-se no caso de Alcides Santos, o informático que no início do ano tomou uma iniciativa semelhante junto da Provedoria da Justiça e que em muito pouco tempo conseguiu obter emprego fruto da exposição que teve nos órgãos de comunicação social.

No seu caso em concreto, Nelson Arraiolos escreveu três cartas. Além da que endereçou ao Presidente da República, dirigiu-se à ministra das Finanças e à repartição das Finanças do Bombarral. Diz que não obteve qualquer resposta.

Nos textos que escreveu, e para justificar os seus pedidos, cita a Constituição e invoca os artigos 26º, 28º e 63º. O 26º refere-se às garantias contra a utilização abusiva de informações relativas a pessoas e famílias.

"A Segurança Social, através do cruzamento de dados com a Autoridade Tributária, dispõe de informações sobre as minhas finanças, que foram abusadas para levar a cabo uma penhora ilegal sobre a conta bancária da minha mãe, que não tem qualquer vínculo às minhas finanças pessoais", contesta.

O artigo 28º diz respeito ao direito ao trabalho e o 63º à promessa de protecção por parte da Segurança Social em caso de doença, invalidez, orfandade, viuvez, desemprego e todas as situações de diminuição de meios de subsistência. Nelson Arraiolos sofre de uma doença degenerativa rara, chamada Charcot-Marie Tooth, também ela um entrave à obtenção de emprego.

"Tenho ido a algumas entrevistas e sinto claramente que sou colocado de parte, possivelmente porque as pessoas observam a forma como eu ando de forma diferente. Mas isto não quer dizer que eu não esteja válido para trabalhar - darei o meu melhor em qualquer emprego", sustenta. 

"Infelizmente, em pleno século XXI, estamos num país que continua a discriminar as pessoas. Felizmente não tenho filhos nem sou casado. Se tivesse, não sei como é que os iria alimentar. Aliás, a minha acção neste momento não é só para mim. Sou porta-voz de pelo menos meio milhão de desempregados que não têm qualquer rendimento."