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"O melhor arquitecto é o tempo." E Siza diz que o tempo lhe deu razão

23 ago, 2013 • Maria João Cunha

Responsável pelo projecto de recuperação do Chiado, que acordou em chamas a 25 de Agosto de 1988, o arquitecto Siza Vieira conta como Lisboa viu ressurgir o que o fogo levou.  

"O melhor arquitecto é o tempo." E Siza diz que o tempo lhe deu razão
As mãos de Siza desenharam assim o renascer do coração de Lisboa, tomado pelo fogo em 1988. Mais tarde, os seus equissos haviam de tomar a forma do Chiado de hoje. Para o arquitecto não são obras de arte, são antes "o tomar de decisões importantes, utilizando a ligação especial entre a mão que desenha e a mente". Para Siza Vieira, quando se desenha muito, "potencializa-se e complementa-se, puramente pensando e imaginando, os resultados a que se chega".

Álvaro Siza Vieira estava em França quando apanhou "um susto": viu na televisão que Lisboa estava a arder. Foi há 25 anos. Quis saber o que se passava e percebeu que não era a cidade que ardia, mas era como se fosse: o coração da capital, o Chiado, era tomado por um incêndio. Siza Vieira acabou por ser convidado para reerguer o que as chamas tiraram, a convite do presidente da Câmara. A dado momento, o arquitecto viu-se desiludido com o resultado da sua própria obra, mas o tempo trouxe-lhe considerações novas e não vê motivos para que hoje alguém diga que o seu projecto fracassou.


Como tomou conhecimento do incêndio no Chiado?
Não estava em Portugal, estava em França e julgo que tomei conhecimento pela televisão de que Lisboa estava a arder. Apanhei um susto, não era menos que isso: ‘Lisboa está a arder’. E depois, enfim, telefonei para pessoas amigas, informei-me do que se passava e soube que não era Lisboa a arder, embora fosse gravíssimo e um grande trauma para a população de Lisboa - não só de Lisboa, do país todo. Foi uma coisa que emocionou muito e que também chamou à atenção para muitos problemas a resolver de modo geral e que não se referem somente àquele incêndio.

Pouco depois, é convidado pelo então presidente da Câmara, Krus Abecasis, para pensar a recuperação da zona.
O presidente Abecasis deu o apoio total, foi sempre empenhadíssimo. A meu pedido, formou um gabinete da Câmara no próprio local, em ligação directa com a presidência. E para este gabinete convidou pessoas com outras experiências, como por exemplo o engenheiro Pessanha Viegas, que tinha estado presente na recuperação de Angra depois do terramoto. Na verdade, um dos maiores desafios era o diálogo com os muitos proprietários, inquilinos e interesses.  De qualquer modo, saliento todo o espírito criado no gabinete do Chiado, onde havia engenheiros e arquitectos. Funcionou realmente como uma equipa.

Houve, no entanto, pelo menos um momento em que se sentiu desagradado com o caminho que viu o projecto seguir. Falo particularmente das opções tomadas para o interior do edifício dos Armazéns do Chiado. No livro “Chiado em Detalhe” fala de ter sido preterido pelos “tiques” de um decorador.
Os Armazéns do Chiado. A ideia do engenheiro Abecasis, a que eu mais uma vez dei o meu imediato e entusiástico apoio, ou concordância, era fazer ali um hotel. Todo o edifício seria um hotel. O estudo prévio que é apresentado no plano vai nesse sentido. E podia ser interessante um hotel de prestígio num sítio daqueles, num edifício com uma história rica, sobretudo existindo documentos do projecto inicial. Essa ideia, para mim, era excelente, mas não teve andamento porque não houve interesse de investidores. E quem apareceu, então, interessado no edifício, em fazer as obras e pô-lo a funcionar, foi uma empresa holandesa, que, por outro lado, não estava interessada em fazer um hotel, mas sim um centro comercial. Eu tive pena dessa mudança no programa. Ainda se conseguiu com a empresa que houvesse um hotel nos dois últimos pisos, aliás com um terraço com uma vista fantástica sobre a Baixa e o Castelo de São Jorge. Eu pedi depois ao arquitecto Souto Moura se podia tomar conta do centro comercial e ele fez um magnífico projecto. Mas claro que não era exactamente aquilo que eu desejava para aquele edifício.

Mas vê, agora à distância, vantagens na instalação de um centro comercial?
É verdade que também teve um papel fundamental na recuperação da zona, em termos de vida, de movimento. Sobretudo a partir da instalação da Fnac. E por duas razões. Primeiro, a Fnac passou a fechar tarde e não às 19h00, como o comércio geral. Isso rompeu com aquele cair da tarde, quando as pessoas saem para a rua, terminando o trabalho e as lojas fecham. Foi muito importante e a Fnac, além de ser uma livraria de muita importância, tinha exposições, conferências. A negociação, toda a pressão, na verdade, foi feita pelo presidente João Soares, que achou interessante a abertura da loja ali. E realmente foi interessante - aliás, fundamental. A situação, em termos de movimento, ainda era fraca e até se atribuía, na altura, a um fracasso do plano.

Diz então que a dinâmica comercial foi essencial para a recuperação do Chiado e para que o seu plano funcionasse?
Digo que há duas coisas em que é preciso pensar. Primeiro que não é só o desenho, ou as relações potenciais que são estabelecidas, que significa a renovação de uma zona. São iniciativas que se tentam e se conseguem captar. E é também o tempo. Uma zona com a riqueza de séculos de funcionamento, de sobreposição de intervenções, de “patine”, desilude o próprio responsável pelo projecto depois de acabada de recuperar. Eu, neste caso. Quando passeava ali, terminado tudo aquilo, muito limpo e tal, ainda tinha na memória o que era a complexidade da zona do Chiado. Mas eu pensava sempre: ‘É claro! É aquele outro arquitecto bem melhor, que é o tempo’. E realmente o tempo está a funcionar e a introduzir o que é a complexidade, o que são as ideias que surgem. E estou realmente satisfeito a esse respeito.

Como vê hoje a recuperação do Chiado? Há algo que, se pudesse, teria feito de forma diferente?
O que me satisfaz no que vejo é que aquela zona está com vida, tem movimento, tornou a ser um ponto importante da cidade de Lisboa. Pela sua própria condição, mas também porque entretanto se instalaram comércios, residências - que não havia praticamente antes do incêndio - e alguns escritórios. O Chiado reintegrou-se na vida da cidade.


"A mão pensante" de Siza

Fale-nos sobre os seus esquissos [primeiros traços de uma obra] do plano. Temos agora acesso a muitos dos seus desenhos nos seus cadernos pessoais.
Bom, são apontamentos, não são desenhos artísticos com o objectivo de expor. São o tomar de decisões importantes para o projecto, utilizando esta ligação especial que há entre a mão que desenha e a mente. Aquilo que para um famoso arquitecto era ‘a mão pensante’. O desenhar muito, o esquissar muito, tem que ver não com a habilidade e o vício do desenho, antes com o potencializar e complementar, puramente pensando e imaginando, os resultados a que se chega. Vai-se mais longe. É uma forma mais penetrante de desbravar as muitas hipóteses e os muitos caminhos a tomar. Há depoimentos de muita gente sobre esse aspecto da complementaridade entre a mão, no sentido do desenho, e a mente, no sentido da reflexão. São meios complementares de desenvolver ideias e projectos.

Na altura, o plano de recuperação do Chiado foi algo criticado, também pelo tempo que tomou à cidade e às pessoas...
Há sempre críticas, polémicas, opiniões diferentes, é o normal. Mas, por outro lado, houve um apoio constante da Câmara de Lisboa, porque sem esse apoio não se poderia fazer a recuperação no curto tempo que durou - no fundo, foram dez anos. Dez anos parece muito, mas não é para algo daquela dimensão e com tantos problemas - problemas de ordem jurídica, relacionados com o regime de propriedade, mais até do que problemas técnicos. E a recuperação só se conseguiu porque houve um apoio grande por parte da Câmara. E os resultados estão à vista. Acho que neste momento ninguém terá a visão de que foi um fracasso. Haverá quem critique isto ou aquilo, mas não tenho conhecimento que alguém diga - nem me parece fácil dizer - que foi um fracasso.

Demoraram dez anos as obras de maior dimensão, mas o plano ainda não está totalmente concluído.
Agora vai fazer-se uma parte. Trata-se de um projecto que constava já do plano, mas que entretanto não teve andamento, e que esta câmara resolveu promover – que tem importância também para o ambiente da zona, porque estabelece, ou completa, percursos influentes nos movimentos dentro da zona e entre o Chiado e as zonas próximas. Esse projecto é a ligação entre o portal da fachada sul do convento do Carmo, onde se chega pelo pontão que dá acesso ao elevador de Santa Justa, e depois uma descida em rampa, escadas e segundo ascensor para interior do quarteirão da rua do Carmo. É uma plataforma que está à cota da rua Garrett e que tem, na mesma plataforma, um acesso por escadas para meio da rua do Carmo. Ora, esta opção multiplica as alternativas de movimento e sobretudo acaba com a situação de 'cul-de-sac' que tinha ainda esse pátio por trás da fachada da rua do Carmo. É um elemento importante nos movimentos das zonas e, portanto, na qualidade de vida e potencialidade de uso do Chiado.

E como chegou a essa solução de criar uma ligação entre a rua do Carmo, em baixo, e o largo, em cima?
Na altura, convenci-me de que tinha tido uma visão - ou invenção, se quiser. E depois compreendi que me aconteceu uma coisa que é muito importante não se esquecer e utilizar: falo das marcas que ficam das sucessivas intervenções na cidade, sobretudo quando são marcas que têm que ver com a topografia e com as relações com as zonas vizinhas, com os movimentos. Essa invenção descobri porque me mostraram uma gravura antiga, anterior ao terramoto, onde se via - e isso explicava a qualidade do portal sul do Carmo - que havia uma escadaria por ali abaixo. Por muito que o tempo e as pessoas modifiquem as cidades, há marcas que, se as soubermos ler, permanecem e permitem dar consistência aos projectos.

E isso é algo que esteve presente, em toda a linha, neste seu projecto. Que cuidados especiais teve no desenho do plano? É sabido que passeou pelo Chiado, fez os seus próprios desenhos, acompanhou no local as obras. Como foi todo esse processo?
Era necessária uma intervenção rápida, por um lado. Depois havia decisões da Câmara, por unanimidade, no sentido de manter a atmosfera do Chiado, com as quais eu estava de acordo quando me foi colocado esse problema. Porquê? Porque Baixa e Chiado, que no fundo é um prolongamento da baixa, têm a mesma arquitectura. Com apenas duas excepções, praticamente: o Grandella e os Armazéns do Chiado. E essa arquitectura é projectada como um todo.  Na Baixa é comum um grande edifício pré-fabricado, com desenhos preparados para a execução. Os elementos arquitectónicos eram fabricados fora de Lisboa e acorriam a cada obra quando necessário. Há nos arquivos da Câmara muitos desenhos dos alçados, por exemplo da rua do Carmo. E, portanto, não fazia sentido no meu espírito e no da Câmara - e foi mesmo unânime - pretender lançar ali uma nova linguagem só porque um ponto - eram 18 edifícios - tinha sido danificado. Portanto, o que havia a fazer era recuperar esses edifícios. Em parte, as fachadas resistiram ao incêndio, os interiores tinha ardido todos e era necessário consolidar o que estava abalado. E quando tinham caído, refazer dentro do mesmo espírito, como um grande projecto unitário.

E isso implicou uma grande pesquisa…
Em relação a certos elementos, havia que fazer uma selecção, ou estabelecer uma estratégia, pensando numa outra coisa presente na Baixa e no Chiado: as sucessivas intervenções que tinha havido, que nunca atraiçoaram o espirito daquela zona, mas que faziam com que houvesse uma variedade grande, por exemplo de caixilharias. Houve então que fazer como que o lugar-comum do que eram as esquadrias do Chiado e desenhar isso em pormenor. E introduzir aspectos que têm que ver com os dias de hoje: conforto, isolamento térmico, ascensores, por aí fora. Portanto, há um balanço entre o que é um passado de grande qualidade, unitário, e as necessidades actuais. Um balanço pensado.