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Ainda há canções de contestação?

25 abr, 2013 • Matilde Torres Pereira

A música popular portuguesa despontou em meados dos anos 60 sob a repressão de um regime cansado. A emigração, o desemprego e a pobreza inspiraram inúmeros letristas. Trinta e nove anos depois da revolução, ainda há canções de contestação? "As pessoas estão a escrever sobre coisas que já não escreviam há muito tempo", diz quem sabe.

Ainda há canções de contestação?
Celebração do 37.º aniversário da revolução portuguesa também chamada de “revolução dos cravos”. Fotografia de Manuel de Almeida / Lusa
É cíclico. Todos os anos, entre o 25 de Abril e o 1º de Maio, o passado regressa. São dias em que a voz de Zeca Afonso e as guitarras em jeito de bandolim alentejano se fazem frequentes na rádio, com canções que lembram uma época e um país sem a liberdade de hoje. Mas ainda que Portugal não seja o mesmo, a música deste tempo parece estar a retomar preocupações antigas.

"Há muita gente atenta ao que se esta a passar e com vontade de intervir. E eu sei porque falo aqui com eles, conheço as obras que registam, estou por dentro daquilo que gravam e fazem em casa", aponta Tozé Brito, que está ligado à indústria musical há mais de 40 anos.

"De há um ano para cá, as pessoas estão a escrever sobre coisas que já não escreviam há muito tempo", considera Tozé Brito. Quando traz à memória os primeiros passos como músico no Quarteto 1111, nos finais dos anos 60, o agora administrador da Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) sublinha que há preocupações comuns entre canções de outrora e as de agora, mas a maneira como aparecem são inequivocamente distintas.

"Abordávamos as questões sociais, como a guerra colonial, a emigração, a pobreza do país. O que muitas vezes fazíamos, porque sabíamos que se fossem à censura iam ser completamente mutiladas, era editar os discos sem passarem pela censura e isso tinha um preço: nós sabíamos que, ao fim de umas horas ou de um dia ou dois no máximo, os discos eram retirados das lojas."

Sob o crivo do lápis azul, a janela de oportunidade era curta. "Enquanto eram retirados ou não eram, vendiam-se alguns, eram tocados pelas rádios e às vezes era o suficiente para passar a palavra. Pretendíamos que as pessoas percebessem que estávamos a viver num país completamente anacrónico, nada a ver com a Europa dos anos 60 em que estávamos inseridos", conta Tozé Brito.

Todas as 10 canções do primeiro álbum do Quarteto 1111 foram proibidas pela censura. Depois, começaram as experiências, lembra Tozé Brito. "Primeiro, deixámos de escrever nós os textos. O segundo disco é com textos de Gil Vicente: estamos a falar do século XVI, já na altura a carga que esses textos tinham em termos de crítica social e política era actual e assim continuavam. Estávamos a dizer através das palavras de um poeta de há séculos aquilo que a censura não podia censurar." 

O quarteto, que teve vários membros sob a liderança de José Cid até à chegada de um Tozé Brito com uns verdes 18 anos, aproveitou o facto de este ser fluente em inglês para tentar uma nova táctica. "Dissemos as barbaridades todas que nos passaram pela cabeça, tudo aquilo que em português seria impensável. Em inglês nada foi cortado, o que queria dizer apenas uma de duas coisas: ou os censores não percebiam o que estavam a ler ou então percebiam e achavam que o povo não ia perceber."

"Não precisavas de ser de esquerda"
Agora com 61 anos, o compositor admite que, "apesar de tudo", os anos mais complicados da perseguição do Estado Novo não os viveu, tendo começado a produzir música já nos tempos da Primavera Marcelista. Ainda assim, a factura a pagar por estar associado ao disco proibido foi pesada. "Quando cheguei ao serviço militar, aquilo que esperava era ir para o 'Alerta Estar', onde estavam os músicos, actores de teatro, cinema, artistas de circo inclusivamente, e que actuavam para o exército português. Foi-me vedada a entrada a esse serviço porque tinha canções proibidas pela censura e era 'um elemento subversivo'."

Em 1972, percebeu que teria obrigatoriamente de cumprir o serviço militar em África. "E que teria de disparar contra pessoas que nunca me tinham feito mal nenhum. A minha opção foi abandonar o país." Foi para Inglaterra e lá ficou até ao 25 de Abril. "Voltei tranquilamente, fiz o serviço militar e a minha vida normal. Mas custou-me, não eram tempos fáceis."

Quanto à importância das canções de contestação no derrube da ditadura, Tozé Brito está convencido tanto do peso dos temas como dos seus autores. "O nome de Zeca Afonso tem que estar à cabeça de todos os outros, mas houve muitos mais: José Jorge Letria, Adriano Correia de Oliveira, muita gente empenhada nessa frente de batalha."

Para a resistência vivida a cantar, a política tem um peso relativo, considera Tozé Brito. "A maior parte das vozes intervencionistas, como é evidente, veio da esquerda, mas houve muitas vozes humanistas - e considero-me um pouco um humanista neste campo. Não precisavas de ser de esquerda, precisavas de ter consciência social, moral, ter vergonha de olhar para o lado e ver a miséria em que viviam as pessoas ao teu lado."

Há quatro décadas como agora, "quando as pessoas começam a ficar desempregadas, quando há gente que não tem como viver, como dar de comer à família, como pagar contas, fazer face aos compromissos, é evidente que se vai começar a assistir na música, no teatro, na literatura, em tudo o que são manifestações culturais e artísticas, a vozes de protesto muito activas", sublinha Tozé Brito.  "Há muita gente a sair deste país, gente nova, qualificada e é muito grave porque é o futuro do país que se está a ir embora. Quem diz emigração diz os problemas sociais do desemprego, brutal nesta altura. Sem querer comparar épocas, é deles que temos de falar agora."

E ainda há ou não quem cante estas preocupações? "Na SPA falamos com 25 mil autores deste país. Posso garantir que se vai ouvir cada vez mais falar nestes temas."