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José Ferreira Machado

"Queda do Grupo Espírito Santo é mais importante do que reformas da troika"

12 jan, 2015 • João Carlos Malta (texto) e Joana Bourgard (vídeo)

O director da escola de negócios da Universidade Nova de Lisboa defende que Portugal viveu durante muitos anos num sistema que se pode definir de capitalismo clientelar. Queda do BES é um tiro no porta-aviões desse Portugal.

"Queda do Grupo Espírito Santo é mais importante do que reformas da troika"
Em entrevista à Renascença, o director da escola de negócios da Universidade Nova de Lisboa olha para o futuro da economia europeia e portuguesa, depois da saída da troika e a queda de colossos como o BES.

José Ferreira Machado, que cumpre o último dos dez anos como director da escola de negócios da Universidade Nova, defende que o Estado está a ser decapitado. "Ter de haver 'outsourcing' de produção de legislação para escritórios de advogados é o grau zero do estado de direito", salienta.

O professor universitário define-se como liberal, mas quer um Estado que regule a economia. O que não está a acontecer. Às privatizações em massa não se seguiu um reforço da regulação, critica.

O economista crê que a queda do BES promoverá um reforço da concorrência no país, porque aquele banco era o representante icónico da economia "clientelar" e de Estado que vigorou em Portugal nas últimas décadas.

Quanto às transferências de poder que os últimos três anos motivaram e quem serão os novos poderosos em Portugal tem poucas certezas. Apenas um lamento e uma constatação: a de que as privatizações estejam a cair nas mãos do Estado chinês e a "bizarria" que é a venda de empresas públicas a estados estrangeiros. 

Este Governo prometeu uma menor presença do estado na economia. Mas acoplada viria sempre mais regulação, o que asseguraria que o sistema funcionaria. Aquilo que temos visto em casos como o do BES, mas noutros também, é que de facto a economia está mais desregulada - os reguladores ou não têm poderes ou não os utilizam. Por que é que chegamos a este ponto?
Não sei se o exemplo do BES é o melhor, apesar de ser o óbvio. Acho que os erros de supervisão se é que os houve, vieram muito detrás e não tiveram a ver com esta situação. Mas a pergunta chama a atenção para algo que é muito importante e que me preocupa muito: a decapitação do Estado.
 
Sou, por formação e por convicção, um liberal. Há quem diga que sou um neoliberal. Não sei o que isso é. Mas acredito no jogo de concorrência, num quadro de regras bem definidas por um estado que não seja grande, mas seja eficiente e actuante.

O que nós vivemos em Portugal durante muitos anos foi um capitalismo clientelar.

Um capitalismo de estado?
Um capitalismo de estado. E sabemos do que estamos a falar: em compadrios entre empresas e agentes do Estado, entre empresas públicas e empresas privadas que agora vêm ao de cima com todos estes escândalos.

Foi um capitalismo antiliberal porque protege os que estão instalados. É o contrário do capitalismo porque destrói a força criadora e as novas oportunidades. O sistema que vivemos era esse capitalismo de Estado, e isso era muito mau.

Sou director de uma escola de gestão que produz muito bons alunos e não me recordo do último que tenha dito: "Quero ir trabalhar para o Estado". São pessoas muito espertas. O exercício de funções do Estado não só se desprestigiou financeiramente como se desprestigiou socialmente.

Mas concluindo, a regulação funciona?
Acho que não. Temos reguladores sectoriais, a autoridade da concorrência. Penso que todas fazem o seu caminho e a sua aprendizagem. Mas no sector financeiro, os especialistas dizem-me que a separação de poderes entre a CMVM e o Banco de Portugal e o Instituto de Seguros não é o melhor arranjo, nem o único possível.

Há confusões entre o que é a regulação prudencial e comportamental. A indústria bancária é tão complexa, os produtos são tão complexos, que torna-se difícil de acompanhar, não obstante terem existido erros óbvios de regulação. Ma o que fazer se não consigo contratar para os reguladores as melhores cabeças? Isto é uma guerra do gato e do rato.

Há forças desequilibradas?
Acho que haverá. Mas isso é um bocadinho inevitável. Se sou regulado estou sempre a pensar em maneiras de fugir. Mas é muito importante dotar o Estado e as suas instituições de pessoas muito capazes. Por exemplo, a destruição de gabinetes ministeriais que levaram à contratação de consultores. São coisas que são caras no momento, mas nos vão poupar muito mais dinheiro. O exemplo disso, e que se criticou muito, foi Paulo Macedo, quando foi director-geral dos Impostos, porque ganhava uma grande quantidade de dinheiro. Mas ele mudou a máquina fiscal e esse investimento veio a provar-se tremendamente rentável.

É preciso combater a demagogia. Ter de haver "outsourcing" de produção de legislação para escritórios de advogados é o grau zero do estado de direito. É muito importante pagarmos o suficiente para termos pessoas boas em cargos públicos, caso contrário não  as teremos.

Quais serão as repercussões do caso BES para Portugal?
Antes do que vou dizer, quero esclarecer que nada põe em causa o apreço que tenho por muitas pessoas que trabalhavam no banco e pelo doutor Ricardo Salgado, em particular, que sempre tratou a faculdade que dirijo com grande respeito e me deu grandes provas de consideração e amizade.

Mas dito isto, o Grupo Espírito Santo era o epítome do capitalismo de estado. Era muito destruidor da concorrência, de novas oportunidades, e não obstante os custos de curto prazo que possa ter, o que se está a passar com o Grupo Espírito Santo é mais importante do que todas as reformas que a troika tentou implementar em Portugal. Porque basicamente pode representar um grande reforço da concorrência, um grande tiro no porta-aviões do capitalismo de estado.



Os últimos três anos trouxeram consigo transferências enormes de poder. O poder tem horror ao vazio. No pós-troika quem é a nova elite de Portugal? Quem serão os novos poderosos?
Não sei quem são, mas vou-lhe dizer quem gostaria que fossem. Gostava que não existissem. Em Portugal, temos uma obsessão com elites e com poderosos. Gostaria que houvesse um campo de jogos mais equilibrado onde as pessoas com mérito pudessem fazê-lo valer. Gostaria que houvesse menos poderosos e  mais centros de poder. Isso seria um choque concorrencial.

Nos últimos tempos assistimos a um bota-abaixo de poderes instituídos. Pessoas que se julgavam gestores extraordinários, a PT, o BES. Não sei quem serão os novos poderosos.

Os chineses?
Os chineses serão os novos poderosos. Mas quem são?

O Estado chinês...
Ah, isso pode ser. Não tenho nada contra tomada de posições de empresas chinesas na economia. Mas se for o Estado chinês… e muitas vezes não se sabe onde começa uma coisa e acaba a outra.

Não é bizarro estarmos a privatizar empresas que são compradas por estados?
É um bocado bizarro, é. Mas quando apenas se pode privilegiar o encaixe.

É apenas econometria sem economia...
Exactamente. O que interessa é só o dinheiro que entra. O mais preocupante é muitas vezes ser mesmo o estado chinês que está a tomar posições em Portugal.

Após três ameaças de bancarrota, deixámos de ter a moeda para desvalorizar e não temos quase nada para privatizar. Se no futuro tivermos outra ameaça de ruptura financeira como lhe vamos responder?
Vamos resolver como resolvemos esta, fazendo parte do euro e trabalhando mais. Há quem diga que nunca vivemos uma crise verdadeiramente profunda e por isso mesmo nunca fizemos reformas. Nunca fomos encostados genuinamente à parede como noutros países, como a Polónia ou a Finlândia. Os países adaptam-se, temos de criar mais flexibilidade. Nós não sobrevivemos vendendo, sobrevivemos ajustando, cortando despesa.

No fundo, como é que as famílias sobrevivem quando têm um choque desta natureza? Trabalham mais, gastam menos. É isto que os países têm de fazer. Ter a moeda para desvalorizar permite amortecer estes choques. Mas é artificial. Não nos habilita a resolver os choques.