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Guerra entre nuclear e renováveis tem batalha luso-francesa

23 out, 2014 • João Carlos Malta

Conselho Europeu que arranca esta quinta-feira pode ficar marcado por um chumbo português no "Pacote Clima e Energia 2013". Portugal quer criação de um mercado verdadeiramente europeu. Mas a França é força de bloqueio.

Guerra entre nuclear e renováveis tem batalha luso-francesa
Se nos campos de futebol Portugal já não ganha à França há 40 anos, no que respeita à energia a disputa tem, pelo menos, 25 anos. No final desta semana, são esperados novos capítulos. O palco será Bruxelas, durante o próximo Conselho Europeu em que se discute o "Pacote Clima e Energia 2030". Nesse encontro, Portugal promete vetar a resolução europeia se não forem revistas em alta as metas para a utilização de renováveis.

O primeiro-ministro advertiu, na quarta-feira, durante uma visita ao Luxemburgo, na véspera de rumar a Bruxelas, que Portugal não subscreverá as conclusões da União Europeia (UE) sobre o pacote que ignorem a questão das interconexões.

Em cima da mesa, nesta quinta e sexta-feira, estão as exigências portuguesas de desbloquear as ligações com o resto da Europa para poder exportar electricidade e gás. Nesta luta, tem o apoio de Espanha. Contra está a França.

Mas esta é também uma guerra entre duas filosofias: a da Península Ibérica, onde as condições são propícias à produção de energia a partir de fontes renováveis; e a gaulesa, centrada no consumo que recorre à produção nuclear.

Mas regressemos ao início e tentemos perceber por que é que o que se discute neste final de semana na Bélgica é importante para Portugal. À Renascença, Carlos Zorrinho, eurodeputado e especialista do PS na área da energia, dá uma ajuda.

"Faz falta um mercado único de energia. Para que os países que produzem mais energia renovável sejam mais eficientes tem de haver um mercado. Para isso, é fundamental que haja interconexões [nas redes transnacionais], designadamente entre a Península Ibérica e França. Devia corresponder a 10% da energia produzida, mas neste momento são 1% ou 2%", sintetiza o secretário de Estado da Energia do Governo liderado por José Sócrates.

Só assim, Portugal pode aproveitar ao máximo as capacidades privilegiadas que tem para produzir energia a partir do sol, do vento ou da água, e ajudar a aumentar as exportações do país nesta área.

Zorrinho recorda que, no seu tempo de Governo, estava apalavrada a venda de toda a sobreprodução de energia verde produzida em Portugal para o Luxemburgo. A falta de vias para fazer circular a energia matou o negócio.

O argumento financeiro não colhe junto do deputado europeu, que recorda ainda que este ficaria abaixo da comparticipação comunitária para a construção de uma central nuclear no Reino Unido. Quanto aos argumentos ambientais das povoações que não querem ter postos de alta tensão a passar-lhes por cima, responde: "Enterrem-se os cabos".

Portugal quer compromisso com a Europa
Ao "Público", no início deste mês, o actual ministro da Energia, Moreira da Silva, revelou que Portugal propôs inicialmente que se fixasse uma meta comum de 40% de energias renováveis para 2030 e interligações de 25% da capacidade de produção instalada de electricidade. Mas as ambições europeias são mais baixas e em cima da mesa de negociações está actualmente um objectivo de 27% para as renováveis e apenas 15% de interligações.

Estas metas não comprometem as aspirações portuguesas, reconhece o ministro, desde que sejam vinculativas.

Para Zorrinho, tal como existem no continente "auto-estradas marítimas", "auto-estradas-terrestres", ou "auto-estradas aéreas" também é necessário construir as "auto-estradas de energia".

"É preciso que no contexto europeu haja a possibilidade de a energia circular. A energia é difícil ou muito difícil de conservar. Se não houver um mercado a fluir é normal que os países continuem a preferir outras tecnologias em que só é preciso carregar num botão, como as centrais de ciclo combinado [nestas centrais estão instalados dois ciclos, um de gás e outro de vapor, produzindo ambos energia eléctrica]", alerta.

A França como opositor e a força nuclear
Mas quem impede que esta aparente mais-valia para a Europa, que consiste em desatar os nós para que haja um verdadeiro mercado europeu de energia? A França, no caso português.

A explicação tem um contexto. O presidente da Endesa Portugal, empresa espanhola que actua também no mercado português, Nuno Ribeiro da Silva, enquadra-a. Não tem dúvidas ao dizer que a França tem uma postura proteccionista: "Este é um problema que tem 25 anos ou mais. A França empurrou o problema com a barriga para que nunca se viesse a concretizar."

Porquê? "Hoje nenhum estado europeu pode dizer que é contra as energias renováveis. Mas o que é sabido é que em França três quartos da energia consumida são de fontes nucleares. Há todo um complexo industrial e a estratégica de domínio das tecnologias nucleares para a produção nuclear. É uma estratégia que remonta ao general de Gaulle e ao plano de dissuasão nuclear", recorda.

O socialista Carlos Zorrinho acrescenta ainda que a França teme a competição que as renováveis introduziriam à sua produção nuclear.

Para Nuno Ribeiro da Silva, há distorções neste mercado "porque os vasos comunicantes" (os Estado-membros) não podem livremente comprar e vender. Resultado: os preços não se nivelam.

Este especialista, secretário de Estado da Energia entre 1986 e 1991, lembra que na Europa há vários mercados regionais. O ibérico é o conhecido Mibel.

Ibéria pode ser arma na guerra do gás
Também em termos geopolíticos, na óptica ibérica o reforço das redes transeuropeias de electricidade e gás pode ser de vital importância. As ameaças russas teriam, nesse caso, menos peso.

"Poderíamos proteger-nos das pressões russas. Os terminais ibéricos podiam mitigar as necessidades da Europa, e impedir os russos de porem a Europa a bater o dente", salienta Ribeiro da Silva.

Caso o Conselho Europeu fixe, até 2030, metas mais ambiciosas do que as actuais, isso seria, na opinião deste gestor, um factor de dinamismo no mercado das renováveis na Península Ibérica.

"A Endesa dispõe de um parque de centrais de ciclo combinados muito recentes que na Península Ibérica estão subutilizadas. No grupo, o braço que dispomos para as renováveis tem também posições muito importantes na Península Ibérica, nomeadamente em Portugal, e isso seria uma possibilidade de aproveitar melhor os investimentos feitos e rasgar um espaço para crescer e investir em novas oportunidades", define.

Prognósticos só no fim do jogo, mas o árbitro está a favor
Mas será este o momento para que Portugal faça o caminho necessário para fazer a sua energia chegar a "bons portos" na Europa?
Zorrinho diz que a mudança de liderança na Comissão Europeia e os objectivos já enunciados pelo presidente, Jean-Claude Juncker, de pôr o continente no comando mundial das renováveis podem ser um bom tónico.

A este comprometimento junta a promessa feita pelo comissário da Energia, o espanhol Miguel Arias Cañete, que lhe garantiu na primeira audição que "considerava intolerável haver este bloqueio nas interconexões entre a Península Ibérica e o resto da Europa".

Por estas razões, Zorrinho tem esperança que neste "Conselho Europeu haja já tomadas de posição concretas".